26 de ago. de 2011


Enquanto hoje se discute a confiabilidade de carros produzidos em locais distantes como China e Índia, nos anos 60 a discussão era outra: seria possível criar e construir um automóvel moderno em pleno Brasil? Mais do que um veículo, a história do Democrata é uma epopeia com a cara de nosso país: ambiciosa, apaixonante, mas cheia de obscuridades pelo caminho.



A aventura foi lançada pelo empresário Nelson Fernandes, um empreendedor de relativo sucesso em seus projetos anteriores. Fernandes havia criado o Acre Clube, um clube de campo que existe até hoje em São Paulo. Toda a construção foi feita com base na venda de títulos de propriedade, algo comum nesse tipo de empreendimento. Funcionava da seguinte forma: a empresa responsável pela construção vendia os títulos, se capitalizava e com a verba arrecadada na venda, poderia concluir o projeto. Uma vez concluído, os compradores recebiam títulos de propriedade e poderiam usufruir do clube.
Após a conclusão do Acre Clube, Fernandes lançou outro projeto nos mesmos moldes, o Hospital Presidente, também bem-sucedido. Isso o levou a dar início ao seu plano mais ambicioso: capitalizar e construir a fábrica que futuramente viria a produzir o “primeiro automóvel 100% nacional”. Para isso, foi fundada em 1963 a Industria Brasileira de Automóveis Presidente, ou simplesmente IBAP, prevista para ocupar um terreno em São Bernardo do Campo onde seriam construídas as futuras instalações da fábrica, tudo com capital brasileiro arrecadado com a venda das ações da empresa.

O objetivo da IBAP era vender 87 mil títulos de ações. Tais papéis renderiam dividendos anuais, e seus proprietários teriam prioridade na compra de um carro da empresa a cada 15 meses. Os carros seriam vendidos aos acionistas com 20% de desconto e poderiam ser parcelados em até 30 vezes.
Fernandes sonhava em produzir três modelos: um popular, um utilitário e um modelo de luxo. Por questões estratégicas, a IBAP optou por iniciar as atividades com o carro de luxo. Nascia aí o Presidente Democrata, previsto para existir nas versões sedã e cupê. O nome Presidente Democrata soaria irônico já no ano seguinte quando, após o golpe militar de 1964, iniciava-se a ditadura militar no Brasil.

Inspirado no design do Chevrolet Corvair (acima), o projeto resultante tinha 4,68m de comprimento e 1.150kg. Seu motor era um V6 com 2,5 litros e 120c cavalos a 4.500 rpm, instalado na traseira. Todo de alumínio e de origem italiana, esse motor se assemelhava muito aos Alfa Romeo da época. O câmbio era manual de 4 marchas, e o carro tinha uma velocidade máxima divulgada pela IBAP de 170km/h, com aceleração de 0 a 100km/h em 10 segundos, desempenho nada menos que assombroso para os carros nacionais daquela época.
A suspensão dianteira era composta por molas helicoidais com braços triangulares sobrepostos. Já a traseira possuía semi-eixo oscilante. Toda a suspensão ia fixada ao chassi. Os freios nas 4 rodas seriam a tambor. Por dentro, muito luxo com bancos de couro, painel revestido em madeira de jacarandá e volante esportivo. Já a carroceria seria feita de plástico com fibra de vidro, o que reduziu o tempo de montagem das unidades de pré-série. A empresa prometia um preço final de 4 milhões de cruzeiros para o Democrata, aproximadamente R$ 32.500 em valores atuais.
No Salão do Automóvel de 1964, a IBAP expôs o Democrata, porém era expressamente proibido abrir o capô do carro, sob a alegação de que tal medida era necessária para evitar que houvesse vazamento de informações a respeito do motor do carro.

Durante o Salão e nos meses subsequentes, surgiram rumores cada vez mais fortes e discutidos pela imprensa especializada (sobretudo pela revista Quatro Rodas) de que aquele Democrata nada mais era que um Corvair disfarçado. Muitos anos depois, o próprio Fernandes admitiria que aquela unidade em exposição usava o chassi e o motor do Corvair.
Meses depois, a IBAP construiu mais cinco unidades, todos cupês, e levou os carros para uma verdadeira expedição por todos os estados brasileiros de modo a alavancar a venda das ações da empresa. Dessa vez os carros já estavam equipados com o motor V6 italiano. Com os veículos sendo mostrados ao público e impressionando bastante por onde passava, em pouco tempo todas as 87 mil ações foram vendidas.

Em materiais publicitários da época, a IBAP prometia uma produção diária de 350 carros já em 1968. Essa era a mesma quantidade de Fuscas e Kombis que a gigante Volkswagen produzia no país na época, o que dá uma ideia da grandiloquência dos objetivos.
Mas faltando poucos meses para o início das atividade industriais prometidas por Fernandes, a revista Quatro Rodas apurou que nenhum maquinário havia sido importado e que nenhum contrato com fornecedores havia sido firmado. A IBAP sofria cobranças a respeito do modelo de produção a ser adotado, uma vez que a data de início da produção de aproximava e nenhuma mudança era vista na fábrica, que ainda tinha toda a produção artesanal e pouquíssimos funcionários.


Outro fator que despertou a desconfiança da mídia a respeito do Democrata era o fato da carroceria de plástico e fibra de vidro ser ideal apenas para pequenos volumes de produção (como os fora-de-série nacionais), jamais para uma indústria que prometia produzir mais de 300 carros diariamente.
Na mesma época o governo havia colocado à venda a estatal FNM (Fábrica Nacional de Motores), na Baixada Fluminense, e Fernandes tornou-se um dos maiores interessados em comprá-la e aproveitar todo seu potencial industrial. Ele dizia que por esse motivo a fábrica de São Bernardo não seria ampliada, uma vez que iria produzir no Rio de Janeiro seus motores e carros.

Como garantias do negócio foram colocados o terreno em São Bernardo do Campo e imóveis de Fernandes, porém, por motivos nunca esclarecidos, a proposta de compra por parte da IBAP foi rejeitada pelo governo. Muitos atribuem isso a uma pressão das grandes fabricantes já instaladas no país, que se sentiam ameaçadas pelos planos da Presidente. Posteriormente, a FNM seria adquirida pela Alfa Romeo.
No final de 1964 a situação para a IBAP ficou ainda pior, quando um navio vindo da Itália trazendo 500 motores, moldes e ferramental foi apreendido logo após chegar ao porto de Santos. A alegação foi de que a carga era proveniente de contrabando, porém a IBAP possuía toda documentação e autorizações para importação dos componentes em ordem.
Em junho de 1965 o governo inicia então uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a IBAP. Após a conclusão da CPI, enquanto o relatório não era publicado, a IBAP comprou matérias nos principais jornais do país onde era publicado que nada de irregular havia sido encontrado.
A essa altura da novela, alguns acionistas já entravam com pedido de cancelamento de compra das ações. Para tentar conter a evasão de capital, alguns diretores da empresa orientaram os vendedores de ações a dizer que a revista Quatro Rodas havia testado o Democrata e iria publicar elogios a respeito do carro. Tal teste nunca ocorreu, e a revista mais uma vez publicou matéria denunciando o fato.
No início de fevereiro de 66, o Diário Oficial da União finalmente publica o relatório da CPI da IBAP. O relatório concluía que a empresa não tinha conselho fiscal, não havia nenhum registro contábil a respeito dos recursos da empresa, bem como inexistência de Balanço Patrimonial. Em questão de semanas, 37 mil certificados de ações foram cancelados, o que causou um baque ainda maior para a IBAP.

Em meados do mesmo ano, o governo faz uma inspeção surpresa na fábrica da IBAP e atesta a total ausência de maquinário e componentes que permitam a produção dos carros, além de novamente ser constatado que nenhum contrato com fornecedores havia sido firmado. Uma ação do Banco Central contra os diretores da IBAP, acusando-os de captação irregular de poupança popular contribuiu para o agravamento dos problemas da empresa.
No final de 1968 a IBAP encerrava oficialmente suas atividades. Terminava aí o primeiro projeto de um automóvel 100% nacional produzido em série. Somente haveria algo semelhante em meados dos anos 70, com a Gurgel.
O mais incrível é que, depois de longos 22 anos de processo judicial, Nelson Fernandes e toda a diretoria da IBAP foram absolvidos das acusações. Fernandes atribui a derrocada da IBAP a lobbys governistas e acusações infundadas por parte da imprensa, principalmente da Quatro Rodas.

Quase 50 anos depois de lançada a idéia, há vários fatores que explicam em parte o fracasso. A IBAP cometeu alguns deslizes como expor como veículo pré-série um Corvair modificado e ter em falta documentos contábeis, porém os episódios da apreensão do navio trazendo maquinário para a empresa quando toda a documentação estava em ordem e a negativa para a compra da FNM sem motivo justificado corroboram para a defesa de Fernandes.
Hoje restam pouquíssimos Democratas em perfeito estado – segundo fontes, apenas duas unidades restauradas, um no Museu do Automóvel em Brasília, e outro nas mãos de um colecionador de Passo Fundo, no Rio Grnde do Sul. As carrocerias que sobraram após o fechamento da fábrica foram todas destruídas quando do desabamento de um galpão.

Em todos os aspectos técnicos, dinâmicos e mesmo de estilo, o Democrata estava muito à frente da época vivida pelo Brasil. Infelizmente, tanta audácia cobrou seu preço em um país onde as histórias mais fantásticas raramente são conhecidas em todos os seus detalhes.


Fonte:jalopnik
Disponível no(a):http://www.jalopnik.com.br

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