15 de mar. de 2011

A decadência da coleção do sultão do Brunei (Materia Especial )



Poucas coleções de supercarros atraíram mais atenção do que a acumulada pelo sultão de Brunei e seu irmão, o príncipe Jefri. Michael Sheehan, um intermediador de vendas e dono do site Ferraris Online, conferiu o chocante estado de abandono em que eles se encontram.
Brunei é uma nação de apenas 388 mil pessoas na costa noroeste da ilha de Bornéu, equivalente em tamanho ao Distrito Federal, e rica em petróleo. Em meio a uma floresta tropical, Brunei existe principalmente devido a suas enormes reservas do líquido negro e de gás natural. Um sultanato islâmico que data de antes do século XIV, o país é governado pelo sultão Hassanal Bolkiah, um monarca absolutista que está no poder desde 1967. A revista Forbes lista o sultão como o monarca mais rico do mundo há décadas, com uma fortuna estimada na casa dos 22 bilhões de dólares.
Apesar do que já foi escrito sobre a coleção de carros do sultão de Brunei  e da abundância de flagras na Internet, (a maioria incorreta), o mar de 2.500 carros não é do sultão, mas pertence ao príncipe Jefri, o terceiro irmão da autoridade, outros príncipes e vários sobrinhos. Ninguém sabe ao certo a quem pertence cada carro já que não há uma documentação devida.

Mesmo bilionários podem falir

Na função de ministro da finança de Brunei (até 1997) o príncipe Jefri controlava o faturamento vindo do petróleo e gás. Graças à crise financeira asiática de 1997, a empresa de investimentos do príncipe Jefri se afundou em uma dívida de 10 bilhões de dólares; auditorias posteriores revelaram que Jefri embolsou pessoalmente cerca de 14,8 bilhões de dólares.
Muito do dinheiro foi usado para manter um estilo de vida que incluía cinco esposas, 17 filhos e um harém com cerca de 40 mulheres mantidas em um palácio ao lado da coleção de carros. As mulheres no harém recebiam até US$ 20.000 por semana além de opulentas visitas ao shopping, ou viagens na lancha de 180 pés (55 metros) batizadas de “Tits” (peitos em português).
No ano 2000, o príncipe Jefri fechou um acordo judicial em um processo aberto contra ele aberto pelo governo do Brunei e começou a devolver bens ao estado, incluindo mais de 500 propriedades no Brunei e no exterior, mais de 2.000 carros, 100 quadros, cinco iates e nove aeronaves. Seus registros revelam que ele gastou US$ 78 milhões na Pininfarina SpA em Ferraris personalizadas e US$ 475 milhões na Rolls Royce.
No começou de 2002 um importador de Brunei me ofereceu um lote com treze Ferraris muito especiais e McLarens F1 da coleção. Depois de uma negociação tradicional, concordei em comprar duas McLarens, uma F40 LM e uma 288 GTO Evoluzione para clientes, com a opção para comprar outras dezesseis McLarens e Ferraris, todas elas já em pré-venda.

Um estudo sobre excessos

Em maio de 2002 voei para o Brunei e fiquei lá por três dias no Empire Hotel. Encomendado pelo príncipe Jefri e construído a um custo de 1,1 bilhão de dólares, o Empire Hotel oferece um átrio com 36 metros de altura sustentado por colunas de mármore revestidas com folhas de ouro. Possui sete restaurantes de alta gastronomia, um campo de golfe, uma praia, uma piscina imensa, um cinema, uma pista de boliche e tudo o que pode ter alguém com orçamento ilimitado. Com 500 quartos opulentos e 66 suítes ainda mais opulentas, eu nunca vi mais do que algumas dúzias de pessoas no hotel ao mesmo tempo, e mesmo assim apenas no café da manhã. (Brunei não recebe muitos turistas, em parte devido às leis islâmicas que proíbem bebidas alcoólicas).

Minha inspeção havia sido pré-aprovada e fui recepcionado no hotel por um ex-agente da SAS  (tropa de elite do Exército da Grã-Bretanha) trabalhando como um mercenário profissional/guarda-costas para a família real. Nada está a mais do que poucos quilômetros de distância em Brunei, assim a coleção estava perto do hotel, seguindo a costa. O local era fortemente vigiado e cercado por uma muralha com arame farpado e um portão principal à prova de bombas, assim como uma prisão de segurança máxima. Passando pela guarita, tivemos que entregar nossas câmeras e passaportes.
Passamos primeiro por oito prédios de dois andares, cada um com cerca de 75 metros de comprimento por 20 metros de largura, com uma capacidade aproximada de 120 carros por andar. Cada andar de cada prédio parecia ter um tema, então o primeiro andar do primeiro prédio tinha basicamente Porsches recentes, dos 959s até os últimos modelos da década de 1990, quando o dinheiro se foi. Outro andar continha principalmente sedãs Mercedes-Benz 500 de 1996-1997, todos pretos, enquanto outro andar em outro prédio abrigava principalmente Rolls, Bentleys e Astons. Mais um prédio guardava Ferraris novas, incluindo algumas dúzias de 456s e 550s, com várias 550s equipadas com transmissões automáticas experimentais da X-Trac. Cerca de meia dúzia eram pintadas em um preto fosco capaz de absorver a detecção de radares e equipados com câmeras de infravermelho para andar à noite, coisas bem modernas para a época.
Outro andar tinha um mar de Testarossas, 512 TRs e outra meia dúzia de 512M Spyders. Outro andar em outro prédio tinha principalmente Ferraris personalizadas, com três ou quatro 456s quatro portas, quatro 465 Venice Cabriolets, mais peruas 456 Venice, cinco FXs, um par de Mythos e um modelo incrivelmente feio chamado de F90 (abaix0). Para aqueles que sonhavam com filas intermináveis de Ferraris antigas, a única Ferrari da era Enzo era uma 275 GTS n⁰ 7795.

Entre os oito prédios maiores havia um edifício cercado por vidro, não muito diferente de uma concessionária moderna. Ele abrigava três McLarens F1, uma 288 GTO Evo, uma F50 e uma F40 LM. A F40 LM era pintada de preto com um interior de couro totalmente em preto com detalhes vermelhos. Tinha ar condicionado, vidros elétricos e, como todos os carros da coleção, seu volante ficava do lado direito. O sol de Brunei lentamente cozinhava os carros enquanto o vidro do prédio funcionava como uma eficiente estufa. Assim como a maioria dos prédios o ar condicionado estava desligado, com isso a combinação de calor e umidade não ajudava na conservação dos carros. Sob este prédio em um ambiente sem vidros que lembrava um cinema ficava uma fila de F40s e um trio de 288 GTOs além de uma variedade de outros carros.

300 Mercedes para erguer uma barreira de corais

Perto dos fundos do terreno havia dois longos prédios de dois andares, distantes 15 metros um do outro. Estendido entre os dois prédios havia um telhado de zinco com uma grade que oferecia alguma proteção contra o sol, mas não contra a chuva. Sob a sua sombra estavam outros 300 carros, em sua maioria 500 SELs ou SLs de 1995 a 1997, todos pretos, muitos com os vidros recolhidos, todos apodrecendo. Todos eles tinham o volante do lado direito, nenhum tinha airbags e nenhum possuía documentação, então… sua venda era inviável na Inglaterra e por causa da falta de airbags, difíceis de se vender na Austrália ou Nova Zelândia. Muitos eram modelos especiais da AMG com interiores bem acabados em fibra de carbono ou madeira, motores grandes, etc. Nós nos referíamos a este grupo como “o coral” já que este seria o seu fim.
Um Rolls conversível novo (por volta de 1997) estava guardado próximo às Mercedes, mas sob um teto de verdade e melhor protegido. Quando abri sua porta vi que o carro chegou a uma temperatura tão alta no verão de Brunei com os vidros fechados que o revestimento do volante havia derretido e formado uma poça sólida de espuma derretida sob o banco dianteiro. O acabamento de couro ainda envolvia o aro de metal do volante e se pendurava como uma camisinha usada. Todo o interior e até o painel havia se soltado com a temperatura e umidade tropical e por isso o interior de couro estava envolto em mofo.
Diferentes subprédios abrigavam carros dos diferentes membros da família real, e um prédio térreo guardava cerca de 60 carros inusitados, quase todos em um tom amarelo gritante, incluindo uma fileira de peruas Bentley com tração nas quatro rodas. Este prédio guardava também uma dúzia de Lamborghinis recentes, a maioria amarela, com alguns carros não amarelos, caso de uma perua 465 Venice com vidros espelhados. Outro prédio menor tinha uma sala repleta de motos caríssimas. Uma sala adjacente estava recheada de centenas, se não milhares de caixas vazias de relógios Rolex, Cartier e Patek Philippe. Na área externa atrás de um dos prédios maiores estava uma longa fila com carros “inferiores”, incluindo o único Corvette da coleção, totalmente destruído pelo sol e pela chuva. Em 1998, quando o dinheiro acabou, a equipe de mecânicos foi dispensada, assim a coleção se transformou em uma imensa tumba, patrulhada apenas alguns gurkhas (tropa de elite de origem nepalesa) com cães.
Um dos ex-integrantes da equipe de manutenção dos Rolls e Bentleys comentou que na década de 1990 o faturamento da Bentley permanecia no azul graças ao “Blackpool” (em referência ao preto, termo usado para descrever lucro, algo como “fonte azul” em português) do sultão do Brunei, cuja frota de carros luxuosos usava a única rodovia no país. A equipe mantinha um Rolls-Royce à frente do local onde estava o sultão, sempre com o motor ligado (“para o caso” dele mudar de ideia e seguir para o aeroporto). As pessoas ligadas à Rolls-Bentley rezavam para que caso houvesse uma revolta, os nativos incendiassem a garagem, caso contrário o mercado de Rolls e Bentleys usadas estaria inundada de modelos por muitos anos.
Dos 2.500 carros da coleção, menos de 100 eram Ferraris e poucas centenas de carros no total eram comercialmente viáveis. Todos tinham uma quilometragem mínima, mas todos precisam de algum tipo de manutenção. Nenhum havia sido usado nos últimos cinco anos (e isso foi em 2002) e assim, mais de 2.000 carros estavam simplesmente perdidos. Nossas ofertas foram animadamente aceitas pelo importador que ofereceu os carros, mas nenhum tinha registro de manutenção ou revisões. Pior, nenhum tinha documentação, e conseguir a papelada para a venda e exportação era praticamente impossível, já que os burocratas do médio escalão do governo estavam paralisados sob a indecisão ou o medo de cometer um erro “político” e liberar a papelada para exportação.
Nós não tivemos a autorização para visitar nenhum dos outros palácios pertencentes aos vários príncipes/irmãos, filhos ou sobrinhos, mas cada um tinha seu próprio estacionamento subterrâneo ainda que somente o sultão tenha mais de uma centena de carros. Na função de sultão o dinheiro nunca acabava, então o sultão tem todos os modelos mais desejados. Assim nós não recebemos autorização para vê-los, já que não havia necessidade de vendê-los.

Final amargo

Minha viagem ao Brunei foi uma fantástica experiência cultural e automotiva, mas nós não pudemos comprar um carro da coleção e os oito anos seguintes em meio a uma floresta tropical não deve ter ajudado os carros. Os governantes locais não têm planos para salvar ou vender a coleção e nenhum interesse em transformá-la em uma atração turística já que isso pode se transformar em uma vergonha política. Eles simplesmente nada fazem.
Nos últimos oito anos, menos de uma dúzia de carros deixaram a coleção, a maioria como presentes dados a pessoas com boas ligações no governo. Outra centena de Mercedes menos importantes foi dada a pessoas do país, mas a maioria da coleção ainda está lá e lá deve morrer, apodrecendo em meio ao esquecimento, uma gigantesca mostra de um excesso automotivo e um total descaso com belos automóveis.

. Michael Sheehan é um vendedor de carros exóticos que mantém o site Ferraris Online. Uma versão mais curta deste texto apareceu na edição de março de 2011 da revista Sports Car Market, e foi republicada com a autorização do autor.

Fonte: jalopnik
Disponível no(a):http://www.jalopnik.com.br

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