Num belo dia, um judeu de estatura minúscula e inteligência maiúscula tomou conta de tudo e fez do esporte uma das atividades humanas mais rentáveis do planeta. Desde meados dos anos 1970, FIA e Bernie Ecclestone dividem direitos e deveres sobre a F1.
A história da Indy é um pouco mais conturbada. E mais antiga, também. Ela surgiu em 1905, quando um grupo de fanáticos por corridas daquelas diligências de rodas gigantescas de madeira e partida manual, por intermédio da Associação Automobilística Americana (AAA), criou um campeonato estruturado de corridas ao redor dos Estados Unidos. Aos trancos e barrancos, sobrevivendo a guerras e acidentes, a AAA Championship Car resistiu muito bem até 1955.
Neste ano de desgraça, Pierre Levegh e outras dezenas de espectadores faleceram em um acidente de proporções inacreditáveis nas 24 Horas de Le Mans. Imediatamente após a tragédia, várias pessoas e empresas envolvidas com o automobilismo em todo o planeta desistiram do esporte. Nos Estados Unidos, a AAA decidiu encerrar todas as suas categorias, incluindo aí a Championship Car, e os fãs das corridas, considerados degradados mentais e sociopatas calculistas a partir de então, que tomassem vergonha na cara e passassem a se divertir com alguma coisa mais saudável. Mas nem todos pensavam assim.
Em 1946, um empresário de Terre Haute adquiriu o depenado e esquecido Indianapolis Motor Speedway por US$ 750 mil, algo em torno de US$ 9,3 milhões nos dias de hoje. Um verdadeiro dinheiro de pinga. Como novo proprietário do oval mais tradicional dos Estados Unidos, Tony Hulman decidiu dar um novo gás às corridas realizadas por lá, em especial as 500 Milhas de Indianápolis. Reformou a pista em tempo recorde e garantiu a realização da famosa prova ainda em 1946, quando o mundo ainda catava os cacos de uma Segunda Guerra Mundial devastadora.
Mas tudo quase acabou novamente em 1978, quando o ex-piloto e então dono de equipe Dan Gurney mandou uma Carta a todos os seus colegas criticando duramente a organização da Usac, alegando que um enorme potencial estava sendo jogado fora pela administração centralizadora e ineficiente da categoria. Citando como exemplo a Foca de Bernie Ecclestone, Gurney sugeriu um modelo de certame totalmente administrado por donos de equipe. A Carta causou enorme furor em todo o paddock da Usac. Outros donos de equipe, como Roger Penske e Pat Patrick, aderiram. A panelinha se criou, ganhou corpo e até um nomezinho simpático: Championship Auto Racing Teams, ou simplesmente Cart.
Em novembro de 1978, a Cart tomou sua primeira grande atitude: exigiu da Usac a remodelação total do conselho administrativo da categoria. Até então, ele era composto por 21 membros exclusivamente nomeados pela Usac. Os revoltosos propuseram um conselho reduzido para apenas 12 membros, sendo seis deles chefes de equipe ligados à Cart e os outros seis burocratas apontados pela Usac. É óbvio que a federação não aceitou. Então, restou à Cart apenas uma coisa: pular fora e criar sua própria categoria.
Em 1979, Cart e Usac promoveram duas categorias em paralelo. As equipes mais fortes da Usac no ano anterior, com exceção da esquadra de AJ Foyt, migraram para a Cart e foram felizes por lá. Na maior cara de pau, ainda tentaram se inscrever para a Indy 500, promovida pela Usac, e tomaram um “não” do tamanho da papada de AJ Foyt. Entraram na justiça e obtiveram o direito de participar.
Em pouco mais de três anos, a Cart e sua “Fórmula Indy” subjugaram a Usac de tal forma que só restou à velha federação continuar organizando a Indy 500 para as equipes do grupo rival. É óbvio que esta simbiose estava calcada em bases frágeis: uma parte entrava com os participantes, a outra oferecia a corrida mais importante dos EUA e nenhuma poderia dizer que sobreviveria bem sem a rival.
No início dos anos 1990, percebendo que a Indy era muito mais vantajosa do que a F1 financeiramente e esportivamente, pilotos, engenheiros e construtores europeus, asiáticos e sul-americanos migraram de mala e cuia aos Estados Unidos. O desempenho alucinante de Emerson Fittipaldi em 1989 serviu para propulsionar ainda mais o interesse das gentes de fora dos EUA pela Indy. O pessoal da categoria, que não é bobo nem nada, percebeu que poderia ganhar uma enorme grana nesse negócio de internacionalização.
Em 1990, nosso nem um pouco querido Tony George, neto de Tony Hulman, assumiu a presidência do Indianapolis Motor Speedway e começou a se tornar cada vez mais influente no automobilismo americano. Dois anos depois, ele ganhou uma cadeira no conselho administrativo da Cart e passou a ser o maior dos opositores aos novos rumos da categoria. Imaginem vocês que George, o herdeiro da Usac, passou a utilizar o mesmo argumento que levou justamente à criação do grupo rival. Segundo ele, a própria Cart estava ficando muito centralizadora e não dava ouvidos às opiniões das equipes.
Em janeiro de 1994, a Cart nomeou como seu presidente o inglês Andrew Craig, um especialista em marketing que visava conduzir a Indy definitivamente ao caminho da internacionalização. Revoltado, Tony George largou o conselho da Cart e anunciou, em questão de semanas, a criação de uma nova categoria. Pela terceira vez, o automobilismo norte-americano de monopostos corria sério risco.
A Indy Racing League de Tony George era uma categoria americana feita para americanos. Ao contrário da Cart, que sonhava em ser como a F1, a IRL acreditava que o certo era manter-se fiel às raízes, respeitar a distinta cultura automobilística dos EUA e conter o avanço crescente da Nascar. Com ovais, pilotos obesos e manchas de ketchup nas arquibancadas, seria ela a verdadeira sucessora da antiga AAA Championship Car.
A princípio, o pessoal da Cart não deu muita bola: praticamente todos os circuitos relevantes, os pilotos de ponta, as equipes mais bem estruturadas e os patrocinadores permaneceram em sua categoria, que foi renomeada como Cart Championship Series. O problema é que a IRL ficou com Indianápolis. E por mais que a Cart tenha desprezado a perda num primeiro momento, ninguém precisa ter pós-doutorado para perceber que a ausência da Indy 500 tornaria seu certame menor.
Cart e IRL apostaram em mercados diferentes, propósitos diferentes e ambientes distintos durante uns cinco anos e conseguiram conviver numa boa nessa época. A partir do início do milênio, equipes e pilotos da Cart voltaram a disputar as 500 Milhas de Indianápolis e o sonho da reunificação começou a ganhar asas. Mas os egos gigantescos dos dois lados não permitiam que o sonho virasse realidade.
Mas também podemos dizer que nenhuma das categorias evoluiu muito desde então. Os grids de ambas giravam em torno dos vinte carros, exceção feita à Indy 500, e o interesse do norte-americano médio por qualquer uma delas era quase nulo. A única coisa que restou foi a briguinha idiota e infrutífera entre os “fãs da Champ Car”, tão inconvenientes e xiitas como os fãs de Los Hermanos, e a IRL, que se destacava por ser comercialmente interessante e esportivamente risível.
Em 2008, numa tacada surpreendente e de certa forma silenciosa, Tony George agregou à sua IRL algumas equipes e corridas da Champ Car, decretando o fim desta última. É óbvio que, para consumo externo, George fala que se tratou de uma “fusão”, mas nem o bebê da creche acredita nisso. A IRL, que virou IndyCar Series, se saiu vitoriosa nesta deprimente rivalidade. Inchou, mas continuou imbecilizada durante algum tempo.
Mas as coisas foram mudando aos poucos. E pra melhor. Em janeiro de 2010, Tony George foi expulso da administração da Indy e do Indianapolis Motor Speedway pelas suas próprias irmãs. No seu lugar, entrou Randy Bernard, um sujeito que trabalhava como o diretor executivo dos rodeios do Colorado e que entendia bastante de administração esportiva. Em sua gestão, Bernard resolveu limpar toda a meleca feita por Tony George e tomar medidas que agradassem especialmente aos espectadores da categoria. No fim de 2011, Bernard mandou para casa o desastrado diretor de corridas Brian Barnhart, pupilo de Tony George, e colocou em seu lugar Beaux Barfield, que já teve o mesmo cargo na American Le Mans Series. Estas medidas foram fundamentais para o atual bom momento da Indy.
Esta é a história política resumida da Indy, muito mais atribulada e cheia de nuances do que a da F1. E ela pode ganhar ainda novos capítulos.
Na semana passada, John Barnes, o dono da equipe Panther, iniciou uma espécie de revolta que almejava tirar Randy Bernard do poder. Bastante insatisfeito com os altos custos do novo chassi Dallara DW12 (cerca de US$ 150 mil mais altos do que o que havia sido prometido inicialmente), as mudanças que a Indy permitiu que a Honda fizesse em seus motores em Long Beach e as desculpas que Bernard dava aos revoltados, Parnes conclamou outros donos de equipe para dar um fim no atual dirigente e colocar algum outro no lugar. Quem sabe, um Tony George.
A notícia assustou todos os fãs da categoria, que achavam que a Indy finalmente estava passando por uma fase politicamente tranquila e esportivamente excepcional. O fantasma de um racha à la 1996 veio à tona e muita gente ficou aborrecida com John Barnes e também com os outros chefes de equipe envolvidos no motim, notadamente Michael Andretti e Kevin Kalkhoven.
Dou meu pitaco desnecessário: reconheço que Barnes não está errado em vários de seus pontos de descontentamento. O chassi Dallara realmente ficou bem mais caro do que o esperado e esta diferença é bastante onerosa para uma equipe de estrutura pequena como a Panther. Além disso, fica claro que o tratamento dispensado à Honda foi bem melhor que o dado à Chevrolet, cujas equipes foram punidas por terem sido obrigadas a trocar seus motores em Long Beach. Por fim, o próprio Barnes tem todos os motivos do mundo para reclamar pela multa de US$ 25 mil tomada por ter reclamado da Indy em sua conta no Twitter.
No entanto, as reclamações são reduzidas a um mero impulso de mesquinhez quando John Barnes decide criar um grupo que pretende depor um diretor executivo que está fazendo, até aqui, um trabalho excepcional de reconstrução da Indy. E a coisa ainda se torna pior quando se analisa quem são algumas das pessoas que estão por trás desta movimentação. Segundo a imprensa norte-americana, dois dos nomes que podem estar tentando voltar ao comando da categoria por meio da revolta são Tony George e Brian Barnhart, justamente dois dos responsáveis pela decadência geral do automobilismo de monopostos nos EUA. Estes cidadãos não deveriam ter o direito de sequer entrar num carrinho de bate-bate, quanto mais no escritório administrativo da Indy.
Vendo a história da categoria, percebe-se como a disputa glutona pelo poder e o choque de egos atrapalharam a evolução de uma das modalidades mais importantes do planeta. Em um mundo ideal, eu até diria que esta alternância de dirigentes poderia ser boa para o desenvolvimento da categoria, mas não foi bem isso o que o tempo nos mostrou. Com tantas brigas e tantas reviravoltas, quem terminou mais prejudicada foi justamente a Indy: espantou parcerias, perdeu credibilidade perante os espectadores, não conseguiu manter uma audiência sólida e viu o trem do progresso passar ali do lado. Tudo graças a picuinhas do tipo esta entre John Barnes e Randy Bernard.
Em mais de uma ocasião, o milenar Bernie Ecclestone afirmou que a democracia não é o melhor sistema para nada, já que sempre é necessário ter alguém que comande as rédeas. Todo mundo o chamou de velho idiota pela declaração. Pois é graças ao ímpeto ditatorial do velho idiota que a F1 atropela a choradeira de equipes, espectadores e empresas e segue sendo a categoria mais sólida e confiável do planeta. Enquanto isso, a democrática Indy sente os ventos da decadência a cada vez que dois se pegam.
Fonte: blog indy speedway
Disponível no(a): http://tazio.uol.com.br/blog/indy-speedway
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