Alguns carros entram para a história por um feito notável, mas o Speed Six merece um lugar na Garagem dos Sonhos não só porque o mesmo carro venceu Le Mans duas vezes seguidas, mas também por ser um típico representante de uma época em que o dono da empresa era também seu engenheiro chefe ou seu piloto boêmio.
Bem lá para trás, quando o mundo (e certamente o automóvel) eram mais novos, as coisas eram… não vamos tentar dizer que eram melhores – ter que ajustar a mistura de combustível enquanto segue por uma estrada de terra comendo todo o tipo de inseto que vem pela frente não deveria ser romantizado tanto. Mesmo assim, o mundo parecia mais desafiador, especialmente quando se tratava de carros.
Em 1907, um anúncio surgiu no Le Matin parisiense com os seguintes dizeres: “O que precisa ser provado hoje em dia é que enquanto um homem tiver um carro, ele pode fazer tudo e ir para qualquer lugar. Alguém está disposto a viajar neste verão de Pequim para Paris de automóvel?” Com estas palavras nasceu o rali Pequim – Paris (ah, e o prêmio era uma garrafa de champagne…). Hoje o anúncio teria o telefone de contato de dezenas de advogados e mais patrocinadores que um estádio de futebol. Ah, e champagne citado logo ao lado de carros? Imagine só.
Tudo isso nos traz ao Bentley. Assim como muitas empresas anteriores às guerras mundiais, a Bentley Motors foi fundada por um fã de carros. Walter Owen Bentley (geralmente chamado apenas de W.O.) e seu irmão H.M. começaram a vender carros franceses em 1912. No entanto, Owen não suportava seu desempenho medíocre, por isso instalava pistões de alumínio e ajustava o motor. Durante a primeira grande guerra, ele trabalhou para a Força Aérea Britânica (RAF) aprimorando o projeto do motor usado nos caças Sopwith Camel e Snipe. Pelo seu bom trabalho, ele recebeu 8.000 libras esterlinas da Comissão de Prêmios a Inventores. Já era hora de fundar sua própria empresa.
Para nós, o dado mais impressionante sobre a Bentley é que W.O. fundou a empresa em 1920 e venceu Le Mans em 1924. As célebres palavras de Carrol Shelby dão uma noção da dimensão do feito: “Le Mans não é uma corrida – é um teste de resistência”. A Bentley venceu em Le Mans de 1927 a 1930, um feito digno de nota, em grande parte alcançado porque seus carros eram duros na queda. O rival Ettore Bugatti se referia às máquinas britânicas como “os caminhões mais rápidos do mundo”, geralmente no conforto dos pits onde suas belíssimas mas frágeis máquinas chiavam e soltavam fumaça.
Os Bentleys não eram só rápidos e confiáveis, eram também inovadores. O modelo de W.O. que conquistou Le Mans em 1924, o Bentley 3-Liter, foi o primeiro carro a usar quatro válvulas por cilindro e velas de ignição duplas. Mas mesmo com o fantástico sucesso nas pistas, um desempenho muito à frente da concorrência e uma merecida reputação de confiabilidade, W.O. estava com tremendas dificuldades para garantir o orçamento. Eis que surgem os Bentley Boys.
Atrevidos? Certamente. Preguiçosos? A resposta para isso é um belo e sonoro não. Os Bentley Boys eram um grupo de pilotos e fãs de carros ricos que se envolveram com a Bentley quando as finanças da marca azedaram em 1925. Incluía um aviador, um jóquei, um Sir, um médico e até mesmo (acredite se quiser) um jornalista automotivo (o respeitado Sydney Charles Houghton “Sammy” Davis). Mas acima de todos estava Joel Woolf “Babe” Barnato. Aos dois anos de idade, Barnato herdou milhões e milhões de libras das minas africanas de diamante de seu pai, Barney Barnato (nesta idade eu só ganhava infecções no ouvido). Impressionado com W.O. e seus carros, Babe Barnato se tornou o principal acionista da Bentley em 1925.
Bentley Blower
No controle da situação, Barnato se juntou com o Boy Henry Birkin e convenceu/forçou W.O. a desenvolver o infame modelo Blower, apesar de Bentley saber que ele seria problemático e não se sairia bem em corridas de longa duração. Mesmo assim, Babe era o (novo) chefe. O Blower tinha uma sede insaciável. O Bentley 4½ L aspirado em sua configuração de competição com 130 cv fazia 6,3 km/l. Com o Blower, Babe e sua turma conseguiram 180 cv, mas apenas 1 km/l! Pior, costumava quebrar com frequência.
Birkin, no entanto, conseguiu estabelecer um recorde de volta na pista externa de Brooklands com 222 km/h em um Blower, que permaneceu até que o ainda mais insano Napier Railton de 24 litros alcançasse os 270 km/h dois anos depois. W.O. sabia que a peça-chave para mais potência e vitórias em Le Mans estava nos motores maiores.
Em 1926 a Bentley apresentou o 6½ L. Era basicamente um 4½ L com dois cilindros a mais. O seis cilindros em linha OHC tinha quatro válvulas por cilindro e produzia cerca de 200 cavalos. Era mais do que o Blower. Melhor do que isso, o 6½ L honrava a confiabilidade dos Bentley, ingrediente chave para o sucesso nas pistas. O controle e o rodar do carro também melhoraram e, pela primeira vez desde a sua fundação, a rival e mais tarde controladora Rolls-Royce tinha algo para temer. Mesmo assim, apesar de ser um carro fantástico, o 6½ L carregava o fardo de uma carroceria pesada. Podia ter a potência e confiabilidade, mas não tinha o necessário para Le Mans.
Speed Six
Em 1928 a Bentley lançou sua obra-prima, o Speed Six. Imagine um 6½ L com dupla carburação, carroceria mais leve e um chassi encurtado. A potência aumentou, o peso diminuiu e o desempenho era digno de sua história. Barnato e Birkin venceram Le Mans em 1929. Por sinal, os Speed Six terminaram em primeiro, segundo, terceiro e quarto lugares. Então, em 1930, Barnato e o também Bentley Boy Glen Kidston repetiram a façanha, com o mesmo carro. Os boys os apelidaram de “Old Number One” e como Babe Barnato só correu em Le Mans três vezes (ele venceu a prova de 1928 com Bernard Rubin em um Bentley 4½ L), isso lhe deu um aproveitamento de 100%, uma marca que provavelmente vai durar para sempre.
É óbvio que só as vitórias seguidas seriam suficientes para indicar o Speed Six à nossa Garagem dos Sonhos. O fato de ser bonito para a época também não atrapalha. Mesmo assim, há mais um dado que pode ajudar na indicação do Speed Six: a corrida contra Le Train Bleu. Certa noite no hotel Carlton em Cannes, provavelmente trincado de bêbado, Barnato aceitou uma aposta de 200 libras de que chegaria com seu Speed Six em Londres antes do Trem Azul chegar a Calais. Assim, com seu colega de golfe Dale Bourne de copiloto, o capitão Barnato partiu do sul da França contra o trem francês já na manhã seguinte.
Resumindo a história, Barnato, Bourne e o Speed Six brindavam no Conservative Club em Londres no momento em que o trem chegou a Calais, vencendo a locomotiva por quatro minutos. Por muito tempo se pensou que o carro que Barnato e Bourne usaram para derrotar o trem foi o cupê Gurney-Nutting, que até hoje é conhecido como “The Blue Train Special”. O único problema é que a corrida aconteceu em março de 1930 e o Gurney-Nutting só foi entregue a Barnato no dia 21 de maio.
Acontece que Barnato usou um de seus três Speed Six com as especificações de Le Mans, não o cupê imortalizado pela obra de Terence Cuneo. Ops. Nós sabemos que ao receber o modelo, Barnato equipou o Gurney-Nutting com um bar no banco traseiro. Um brinde ao modelo, de champagne, por favor.
[Curiosidade: a Bentley nem se importou em correr em Le Mans com o 6½ L nas corridas de 1926, 1927 e 1928 porque os carros eram potentes, rápidos e pesados demais para os pneus da época numa prova de longa duração]
Crédito das fotos: Craig Howell, sfoskett.
Fonte: jalopnik.com.br
Disponível no(a)http://www.jalopnik.com.br



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