27 de jan. de 2011
Os segredos da cena de perseguição em Bullitt
Apesar de toda a atenção que recebeu pela mais famosa perseguição automotiva do cinema, em Bullitt, Steve McQueen guiou em menos da metade da sequência. Marc Myers andou pelo trajeto com o dublê que merece mais crédito por ela e ouviu todas as suas histórias.
Enquanto criança, crescendo em Nova Iorque no final da década de 1960, eu tinha um fascínio pelo filme Bullitt estrelado por Steve McQueen. Apesar de não entender o roteiro, fiquei embasbacado com a cena da perseguição. Na loja de doces, todos os meus amigos falavam obsessivamente dela, provavelmente porque assistir a cena era como estar naqueles brinquedos de parque de diversão que tanto gostávamos. A sensação de estar ali se deve muito pelo uso das câmeras no carro. Você pode sentir cada pulo e tranco.
No domingo, tive a chance de realizar um sonho de infância. Em missão para o Wall Street Journal, estive em San Francisco para andar pelos locais da cena de Bullitt em um novo Ford Mustang V6 2011. No banco do passageiro estava Loren Janes, o famoso dublê de Hollywood que gravou a maioria das cenas perigosas de Steve McQueen. Loren voou de Burbank especialmente para a ocasião. Para completar, tinha o CD da trilha de Bullitt para criar o clima. O resultado pode ser conferido no Wall Street Journal de quarta.
Loren é um cara tranquilo que passou a maior parte de sua vida fazendo coisas malucas. Muito malucas. Ele participou de cenas arrepiantes em mais de 500 filmes – praticamente todos eles facilmente reconhecíveis. Participou ainda de mais de 2.100 episódios para a TV. Você percebe que sem caras como Loren, os filmes nos últimos 50 anos seriam um pouco entediantes. Quando perguntei se algo o assustava, disse simplesmente: “Nada demais. Sempre me fazem essa pergunta. Eu não tenho medo de nada em particular, e nunca quebrei um osso. Fui um ginasta, um fuzileiro, mergulhador e atleta olímpico, o que foi um ótimo preparo para as cenas de ação. Eu sempre me senti confortável no ar.”
Para aqueles que compartilham de minha fascinação com Bullitt ou sempre tiveram curiosidade sobre os dublês, especialmente aqueles que começaram suas carreiras na década de 1950, aqui está o que Loren me disse durante a conversa que nos levou ao passeio no domingo:
“Encontrei Steve McQueen enquanto trabalhava no programa de TV Procurado Vivo ou Morto no qual Steve era o astro principal. Ao que parece, Steve não gostou de outros dois dublês, e ambos foram demitidos. Me chamaram porque tinham cenas para gravar e morava a cerca de cinco minutos do estúdio.“
“Quando cheguei ao set, passei por Steve, que estava sentado. Ficamos impressionados com o quanto parecíamos um com o outro. Ele me pediu para buscar um café. Eu não gostei de ser tratado como um garçom. Fui até ele e disse, ‘Eu vou fazer você parecer melhor do que você consegue. Só não estrague os meus closes.’”
“Enquanto saia dali, podia ouvi-lo gritando para o diretor ou outra pessoa, ‘Demitam-no.’ Acho que lhe responderam, ‘Não, não, ele tem que fazer a cena antes. Nós o despediremos depois se você quiser.’”
“Quando chegou a hora de gravar a primeira cena, o coordenador me contou que Steve a queria da forma mais atlética possível – ou seja, realista e praticamente impossível. A cena exigia que eu atravessasse uma janela baixa de um celeiro, rolasse no chão, levantasse, pulasse sobre dois cavalos, aterrissasse no animal de Steve e saísse cavalgando.”
“Passei algum tempo andando pelo set para ter certeza que o chão estava limpo e não houvesse surpresas. Movi os cavalos um pouco mais pertos um do outro e movi uma pedra para que eu a usasse como plataforma na hora de pular os cavalos.”
“Quando o diretor gritou ‘ação!, fui pela janela, fiz a cambalhota, corri uns quatro metros até os cavalos, pulei sobre dois deles, caí no cavalo de Steve e saí. Steve não podia acreditar. Eu malhava diariamente em barras paralelas e outros equipamentos de ginástica em meu quintal, então pular sobre os cavalos não era um problema.”
“Na volta, lhe trouxe o café, e ele riu. Daquele dia em diante eu trabalhei com ele em todos os filmes que fez, incluindo seu último, Caçador Implacável, de 1980, no qual tive que me pendurar em um trem elevado de Chicago que viajava a quase 90 km/h .”
“Quando estreei como dublê, no começo da década de 1950, a maioria dos dublês eram ginastas ou ex-fuzileiros. Eu tinha feito as duas coisas, além de ter sido um mergulhador. Competi ainda nas olimpíadas de 1956 e 1964 no pentatlo moderno.”
“Uma de minhas cenas favoritas foi em A Conquista do Oeste de 1962. Eu estava atuando no lugar de um ator que havia sido atingido por uma bala. Tinha que pular de um trem que andava a 50 km/h, atingir um cacto e rolar por uma encosta rochosa. Um cacto é como um poste telefônico. Acertá-lo em cheio me mandaria para baixo do trem. Então tinha que descobrir o ângulo certo para atingir a coisa.”
“Eu queria ainda que o cacto fosse flexível. Cavei um metro e cortei a raiz principal. Depois preenchi o buraco com areia para que levantasse uma pequena nuvem quando eu o atingisse. Calculei ainda o ângulo para que soubesse quando pular do trem. Depois passei o maçarico nos espinhos do cacto onde planejava acertar para que não fosse empalado.Na cena, o trem acelerou, eu pulei, atingi o cacto no ponto certo, o cacto caiu junto comigo e descemos a ladeira perfeitamente.”
“Em 1968, quando recebi a ligação de Carey Loftin para trabalhar em Bullitt, que na época era o maior especialista em carros e cenas de ação do mercado, eu estava trabalhando em outro filme. Então não podia começar a filmar Bullitt. Outro dublê, Bud Ekins, fez algumas das primeiras cenas até que eu pudesse gravar. As cenas com Ekins incluem uma com o Mustang e o Charger atravessando a Golden Gate e pelo pedágio a 130 km/h. Mas ela foi cortada do filme.”
“Quando cheguei ao set, Carey explicou o que queria que eu e Bill Hickman, o motorista do Charger, fizéssemos nas tomadas da Taylor Street. A descida em que os carros pulam em cada cruzamento. Sentamos e discutimos o que precisávamos e como executar cada uma das tomadas. Todas as cenas eram assim, com um cuidadoso preparo.”
“Levamos quatro semanas para gravar aquela perseguição de 10 minutos. Não foram feitas conforme aparecem no filme. As cenas foram gravadas rua após rua, e em ordem diferente da que aparece no filme. Então as cenas são organizadas em uma pilha na sala de edição para que haja uma continuidade. Então para um dublê não era tanto uma perseguição de carro, parece mais uma série de momentos por toda a cidade.”
“Antes de gravar na Taylor Street, andei com o Mustang para me acostumar com o carro. Fiz coisas como andar em ré e pisar fundo no acelerador. Ou pisar forte nos freios. Você quer se certificar que tudo está funcionando como deve – perfeitamente – para que possa fazer o que é preciso. Até mesmo o freio de mão é necessário para algumas coisas.”
“Mas lembre-se, não são carros comuns. Muitas pessoas que assistiram ao filme acham que qualquer muscle car pode fazer o que fizemos. Sem chance. Tanto o Mustang quanto o Charger em Bullitt foram modificados. Precisavam ser mais rápidos que carros de rua mas também deveriam aguentar uma verdadeira surra. Isso exigia peças resistentes somadas a coisas como amortecedores de competição, barras de proteção para o assoalho e pneus especiais.”
“A maioria das pessoas acha que Steve McQueen gravou todas as suas cenas nos filmes. Steve era um piloto e tanto, mas ele estava atrás do volante em cerca de 10% do que você vê na tela. Ele dirigia nas cenas que exigiam closes – mas não nas que poderiam matá-lo. Steve sempre me perguntava antes se a cena era perigosa demais para que ele gravasse. Se eu dissesse ‘não’, ele escutava. Era o que tinha que ser feito. Sem Steve, sem filme, e nenhum estúdio em sã consciência iria expor sua estrela a tamanho perigo. Eu sempre dava a última palavra, para sua segurança.”
“Correr pela Taylor foi duro. Por melhor que Steve fosse, apenas os dublês profissionais estavam capacitados para fazer as cenas mais difíceis. Em uma delas, você pode ver que Steve não conseguiu fazer uma das curvas e teve que voltar atrás. A fumaça saindo dos pneus se parece com borracha mas era na verdade uma fumaça de mentira colocada no arco das rodas traseiras.”
“Cada carro que você vê nas ruas durante a perseguição – incluindo o Fusca verde que aparece algumas vezes na Taylor Street – foi guiado por um dublê. Todos sabiam exatamente o que tinham que fazer e quão devagar deveriam ir para que o Mustang e o Charger voassem. Haviam pessoas posicionadas em cada esquina para evitar que os pedestres fossem parar no meio da cena e evitar que alguém abrisse a garagem na hora da filmagem. Mesmo os bondinhos cruzando a Filbert Street estavam ali de propósito e eram operados por dublês.”
“Bud Ekins foi o cara que cai da moto na cena da Guadalupe Canyon Parkway, o que exigiu que eu desviasse para o acostamento de areia. Cheguei ali em alta velocidade. Não tenho ideia do quão rápido estava, já que um dublê nunca olha no velocímetro. Você precisa se concentrar no que tem de ser feito. Seu corpo dirige e seus olhos procuram pelos lugares em que seu corpo precisa reagir. A velocidade não importa tanto. Só precisa ser muito rápido. Quando cheguei à areia, tinha que perder a traseira no ponto certo para desacelerar. De outra forma o carro teria capotado.”
“Tínhamos três Fords Mustang 1968 fastback idênticos e três Dodge Chargers pretos no filme. Muitos dizem que foram apenas dois, mas havia três de cada. Precisávamos dos carros extras caso um deles fosse danificado. A agenda de gravação do filme não pode ser adiada por causa de amassados ou coisas desse tipo. Felizmente só precisamos usar o segundo Mustang uma vez, quando o primeiro teve que ser consertado.”
“A maioria das cenas que você vê de dentro do carro foram gravadas por um cameraman ou uma câmera fixada no carro. Esta foi a sacada do diretor Peter Yates no filme. Ele colocou o espectador dentro do carro, e tudo parecia real e empolgante.”
“O cara dirigindo o Charger – o cara malvado que chega a apertar o cinto de segurança? Aquele era Bill Hickman, um dos melhores dublês da época. Foi ótimo que Peter o escolheu para o filme. Foi provavelmente mais fácil e mais barato dessa forma. Peter sabia exatamente o que estava fazendo e se preocupava com os dublês em cena. Ele sempre me perguntava após cada tomada, ‘Você está bem? Está pronto para continuar?’ A maioria dos diretores não faz isso. Eles apenas interagem com os coordenadores dos dublês.”
“Minhas cenas em Bullitt foram mais rigorosas que as cenas de direção que fiz em outros filmes. Tudo nelas tinha algo a mais do que o que havia sido feito antes, especialmente com muscle cars, que eram relativamente novos. Tudo tinha que estar perfeito. O mesmo se aplicava para Bill Hickman no Charger. Em uma cena, o Charger que ele pilotava desce a ladeira e precisa acertar um carro na esquina. Ele tinha que dar apenas um toquinho com a frente de seu carro, o que aumentava o realismo. Você consegue fazer aquilo apenas se estiver muito familiarizado com seu carro e tiver a plena consciência de qual parte do carro você quer que encoste no outro. Foi incrível.”
“A parte mais difícil da perseguição na Taylor Street foi quando eu tive que pular um desnível e depois virar na Filbert Street. Com aquele tipo de embalo – provavelmente estava a 95 km/h – o carro quer seguir reto ao invés de virar. Então quando me aproximo do desnível, tenho que saber quando virar porque o carro vai derrapar. É física. Você precisa esterçar cedo e deixar o carro deslizar na curva. De outra forma o carro desceria a rua e você erraria.”
“Minhas cenas foram desafiadoras, mas nunca tive medo. Se você sente medo, não pode fazer a cena. Não é uma questão de ser macho. Nós apenas enxergamos isso como um trabalho. O medo leva a um acidente. Você apaga o medo ao acumular experiência e diminui os riscos por meio da análise da cena e um planejamento cuidadoso. O segredo é se preparar sem colocar o realismo em risco. Então você planeja, arruma o set e se joga no que quer que precise ser feito.”
“Eu nunca tive medo enquanto trabalhava em todos esses filmes. Muitas pessoas me perguntam isso. Desconfio que seja porque fui um ginasta e mergulhador. Sempre estive nas alturas e me acostumei a ela e tinha consciência do que fazer quando aterrissasse. Depois de todos esses anos, nunca quebrei um osso.”
“Mas eu jamais faria a cena na Taylor Street hoje. Não que eu tenha medo. É que meus reflexos já não são mais o que eram e eu provavelmente não reagiria tão rápido quanto iria precisar.”
Este texto foi publicado originalmente no Jazzwax.com no dia 26 de janeiro de 2011, e foi republicado com autorização. Copyright Marc Myers.
Fonte: jalopnik
Disponível em:http://www.jalopnik.com.br/
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