Cuba está em voga no Brasil. Nesta semana, a visita da
blogueira Yoani Sánchez ao país afanou as mais radicais ideologias:
enquanto os simpatizantes do regime comunista dos irmãos Castro
receberem-na com cartazes recheados de blandícias como o carinhoso
apelido de “fantoche da CIA”, os liberais mais convictos aplaudiram de
pé a “coragem” da moça que faz oposição ao governo de seu país.
Por grande coincidência, é exatamente em meio à presença de Yoani no Brasil que um dos momentos mais fascinantes e bizarros da história da Revolução Cubana, que também envolve um dos maiores pilotos – senão o maior – de toda a história do automobilismo, completa 55 anos.
23 de fevereiro de 1958. Por volta das 20h40, horário oficial de Havana, Juan Manuel Fangio sai do elevador do Hotel Lincoln, junto com seu empresário, para ter com alguns amigos que o aguardavam no saguão. Enquanto se dirigia ao ponto de encontro, um homem ornado com uma jaqueta de couro chamou pelo seu nome. O pentacampeão da F1 respondeu afavelmente, virando-se em sua direção, quando ouviu a seguinte frase: “Sou do movimento 26 de Julho. Nós vamos sequestrá-lo”.
Em um primeiro momento, o “maestro” pensou se tratar de um chiste de mau gosto e se pôs a esboçar um sorriso. Eis que o sujeito discretamente encostou uma pistola entre suas costelas, reafirmando a voz de rapto. O empresário ameaçou reagir, mas um contundente aviso de “não se mexa, ou atiramos nele” impediram qualquer ação. O argentino foi levado a um Plymouth (preto ou verde, há divergências sobre a cor) que o aguardava na entrada e, escoltado por outros dois veículos e um total de nove pessoas, portando pistolas e metralhadoras, foi levado ao local escolhido como cativeiro.
Antes de darmos sequência à estranha e, por que não?, poética história, precisamos entender melhor o que se deu antes daquele momento. Após anos de repressão da ditadura de Fulgêncio Batista (que deu um golpe de Estado em 1933, foi destituído do poder em 1945, mediante pleito livre, mas aplicou outro golpe em 52, retornando à presidência), o movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro, ganhava cada vez mais força na ilha.
Mesmo tendo a antipatia dos Estados Unidos, Fidel conseguia galgar certo espaço na imprensa internacional, graças à ajuda de um astuto assistente de propaganda chamado Arnol Rodriguez. Voltaremos a mencioná-lo mais tarde.
Em 1957, com apoio do governo americano, Batista resolveu criar uma corrida de protótipos na capital, em um circuito urbano com 5,21 quilômetros de extensão na região do Malecon, à beira-mar. Com pomposos cachês que chegavam a US$ 7 mil dólares (um valor bastante atrativo para a época), mais o pagamento de todas as despesas de viagem e hospedagem, o governo conseguiu atrair competidores do mais alto calibre, como o próprio Fangio, além de Stirling Moss, Carrol Shelby, Harry Schell, Alfonso de Portago e Phil Hill.
A primeira edição, realizada em fevereiro daquele ano, foi um sucesso: sem imprevistos e com diversas estrelas de Hollywood nos camarotes, teve vitória de Fangio, que pilotava um Maserati 300S #2, com Shelby em segundo. Por isso, nada mais natural que repetir a dose no ano seguinte, fazendo uma bela propaganda do país e de seu governo a esse mundão velho.
Só que a situação estava muito mais caótica no ano seguinte. Os simpatizantes do castrismo eram cada vez mais numerosos, na mesma proporção em que também aumentava a brutalidade da repressão de Batista. O governo queria usar a corrida para mostrar um clima de normalidade na ilha, reafirmando seu controle sobre os oposicionistas (alguém mais aí ouviu uma voz mental bradando “Bahrein”?).
Quando Arnol Rodriguez soube que Fangio voltaria para o GP de 58, apurou junto a fontes da imprensa em que data ele desembarcaria em Havana, bem como qual seria seu local de hospedagem. E esboçou um plano simples, porém perigoso: sequestrar o maior vencedor do esporte a motor até então, apenas para deixá-lo de fora da prova e avisar ao mundo que não, a situação em Cuba não estava nem um pouco controlada, e sim, o movimento castrista se encontrava de pé – e mais forte do que nunca.
Faustino Perez, responsável por todas as operações lideradas por Fidel Castro, contatou Oscar Lucero Moya, comandante das atividades do 26 de Julho em Havana, para começar a planejar a ação. A ideia inicial não era realizá-la no Hotel Lincoln, considerado um local inadequado para a “abordagem”, mas sim seguir cada passo do campeão desde sua chegada à capital, em 21 de fevereiro, para achar farejar o melhor momento para a emboscada.
A primeira tentativa foi na saída de uma emissora de televisão, onde Fangio concedera entrevista, mas havia muita gente nas proximidades. Naquela mesma noite, outra possibilidade se abriu enquanto o piloto fazia o reconhecimento do traçado, mas o plano foi novamente abortado, visto que havia muitos seguranças para protegê-lo.
Assim, Fangio teve a oportunidade de ir para a pista no domingo à tarde, cravando a pole position para a corrida, após marcar 1min59s2 na classificação. O tempo foi o mesmo do anotado pelo amigo Stirling Moss, mas o argentino ficou com a preferência por tê-lo registrado antes.
Aquela noite do dia 23 seria a última chance aos sequestradores. Ao saber que Fangio desceria para jantar fora com amigos, como havia feito em todos os outros dias, o grupo não teve dúvidas. Manuel Uziel foi o responsável pela abordagem descrita no início deste longo texto, e obteve êxito: com total discrição, ele levou Fangio até o carro e, de lá, para o cativeiro.
Enquanto trafegavam calmamente pelas ruas de Havana, tentando dar o mínimo de bandeira, os raptores pediam inúmeras desculpas ao pentacampeão, explicando que aquela era apenas uma manobra política e ninguém iria machucá-lo. Na casa escolhida, o ilustre argentino recebeu tratamento “igual” ao do hotel, com a exceção de que os mordomos e camareiras portavam armas de fogo. As instalações incluíam quarto individual, direito a banho, fazer a barba e se alimentar quantas vezes quisesse, com comida de primeira qualidade. Enquanto era observado por seus algozes, o “maestro” também fazia seu esquadrinhamento, iniciando uma conversa sobre os motivos de tudo aquilo que estava acontecendo.
Ao mesmo tempo, do lado de fora, sequazes de Fulgêncio Batista tentavam desesperadamente – em vão – encontrar pistas do paradeiro do grande astro da corrida, interrogando clientes e funcionários do hotel, além de conhecidos partidários do movimento 26 de Julho. Ninguém sabia ou revelou qualquer informação. Na imprensa, a repercussão foi a esperada, com manchetes em capas de jornais de vários países, incluindo o Brasil.
Nos Estados Unidos, é claro que a ação foi alvo de uma enxurrada de críticas. “É uma revolução pobre esta, que precisa golpear a liberdade sequestrando um estrangeiro que não tem a menor noção do que está acontecendo. Abordar um homem de bem, que jamais esperaria que alguém lhe fizesse mal em Cuba, e enfiar uma arma em suas costelas é tão corajoso quanto golpear um bebê com uma chave inglesa”, deblaterou o jornalista Morris McLemore, do Miami News. Por aqui, a ação também foi vista com maus olhos, tendo sido classificada como “palhaçada” pela nossa “Gazeta Esportiva”.
Na manhã de segunda-feira, Faustino Perez chegou ao cativeiro e teve uma longa conversa com Fangio, explicando detalhadamente os porquês da captura e indicando que ele seria libertado tão logo a corrida terminasse. Complacente com a causa, o piloto chegou até a ajudar seus supostos carrascos a planejar sua soltura. Foi dele a ideia de que as negociações ocorressem diretamente com a Embaixada Argentina, para não colocar os revolucionários em risco ao conversarem diretamente com representantes da polícia e do governo.
Do lado de fora, a tensão tomava conta do circuito citadino em Malecon, mas, ainda assim, os organizadores decidiram autorizar a realização do GP. O classudo Maurice Trintignant assumiu o lugar de Fangio no Maserati #2 e a largada para a prova foi dada. O pentacampeão ouviu a narração dos primeiros minutos pelo rádio, mas preferiu não saber mais da corrida, desligando o aparelho. Doze minutos depois da bandeirada verde, o competidor local Armando Garcia Cifuentes perdeu o controle de sua Ferrari na – vejam só a ironia – curva da Embaixada Americana, indo para cima de um grupo de torcedores aglomerados em volta da pista. Estava consolidada a tragédia, que terminou com sete espectadores mortos e outros mais de 40 feridos. Ao saber do ocorrido, ainda em cativeiro, Fangio suspirou em lamentação. O GP foi dado como encerrado e Moss, declarado vencedor, à frente de Masten Gregory.
Findo o evento (da forma mais tétrica possível), era a hora de libertar o campeão. Após contatos telefônicos com o embaixador argentino Raul Lynch, ficou combinado que Fangio seria deixado em uma esquina próxima à casa dele. Perto da meia-noite, o argentino se via novamente em liberdade. “Eles me deixaram com uma carta ao governo da Argentina, pedindo desculpas por me usarem para fins políticos. Foi mais uma aventura. Sei que o que os rebeldes fizeram foi por uma boa causa, então eu, como argentino, aceito”, disse o “maestro”.
Verba volant, scripta manent. Fangio também havia deixado um bilhete àqueles que chamou de “amáveis sequestradores”: “Esclareço que, durante meu sequestro amável, o trato foi completamente familiar, com atenções cordiais e somente me pediram desculpas por esta situação, alheia à minha pessoa”, escreveu. A missiva está exposta no “Museo de La Revolución” de Cuba.
Como todos sabem, a revolução eclodiu e gerou a queda do governo Batista em 59, promovendo Fidel Castro ao poder. O GP de Cuba chegou a ser novamente realizado em 1960, sob o slogan “GP da Liberdade”, tendo nova vitória de Stirling Moss. Quanto a Fangio, este já estava em fim de carreira, passando apenas a regozijar de seu prestígio e glórias nas pistas de todo o globo. Mas os destinos das partes ainda se reencontrariam: Fangio recebeu convites para visitar Cuba como “cidadão de honra”, e realmente voltou, em 1981, representando a Mercedes-Benz para firmar um acordo de fornecimento de caminhões ao governo.
Lá, o agora ex-piloto reencontrou “velhos amigos”, como Faustino Perez, em quem deu um caloroso abraço, e também conheceu pessoalmente, pela primeira vez, o próprio Castro, no mesmo Hotel Lincoln onde estava hospedado naquele 23 de fevereiro de 1958. Arnol Rodriguez, que havia se tornado ministro de Comércio Exterior, viajou à Argentina algumas vezes entre 82 e 84, aproveitando para visitar seu antigo captado. No ano de 83, 25º aniversário da chamada “retenção patriótica” (como os governistas de Cuba denominam o rapto), Perez enviou uma carta a Fangio, que termina com a assinatura “de seus amigos sequestradores”.
Já em 92, foi a vez do próprio Fangio enviar condolências pela morte de Faustino, mesmo ano em que convidou Rodriguez para conhecer sua cidade natal, Balcarce, em uma cerimônica de celebração aos seis anos do museu em homenagem ao multicampeão. Arnol retribuiu a cortesia doando uma réplica do troféu do GP de Cuba de 58 ao acervo, aquele que o argentino nunca pôde disputar.
Três primaveras mais tarde, Rodriguez foi um dos últimos a visitar o já doente ex-piloto, que viria a falecer no 17 de julho daquele ano. No funeral do gênio, chamava a atenção uma opípara coroa de flores, expressando as condolências do camarada Fidel Castro.
Por grande coincidência, é exatamente em meio à presença de Yoani no Brasil que um dos momentos mais fascinantes e bizarros da história da Revolução Cubana, que também envolve um dos maiores pilotos – senão o maior – de toda a história do automobilismo, completa 55 anos.
23 de fevereiro de 1958. Por volta das 20h40, horário oficial de Havana, Juan Manuel Fangio sai do elevador do Hotel Lincoln, junto com seu empresário, para ter com alguns amigos que o aguardavam no saguão. Enquanto se dirigia ao ponto de encontro, um homem ornado com uma jaqueta de couro chamou pelo seu nome. O pentacampeão da F1 respondeu afavelmente, virando-se em sua direção, quando ouviu a seguinte frase: “Sou do movimento 26 de Julho. Nós vamos sequestrá-lo”.
Em um primeiro momento, o “maestro” pensou se tratar de um chiste de mau gosto e se pôs a esboçar um sorriso. Eis que o sujeito discretamente encostou uma pistola entre suas costelas, reafirmando a voz de rapto. O empresário ameaçou reagir, mas um contundente aviso de “não se mexa, ou atiramos nele” impediram qualquer ação. O argentino foi levado a um Plymouth (preto ou verde, há divergências sobre a cor) que o aguardava na entrada e, escoltado por outros dois veículos e um total de nove pessoas, portando pistolas e metralhadoras, foi levado ao local escolhido como cativeiro.
Antes de darmos sequência à estranha e, por que não?, poética história, precisamos entender melhor o que se deu antes daquele momento. Após anos de repressão da ditadura de Fulgêncio Batista (que deu um golpe de Estado em 1933, foi destituído do poder em 1945, mediante pleito livre, mas aplicou outro golpe em 52, retornando à presidência), o movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro, ganhava cada vez mais força na ilha.
Mesmo tendo a antipatia dos Estados Unidos, Fidel conseguia galgar certo espaço na imprensa internacional, graças à ajuda de um astuto assistente de propaganda chamado Arnol Rodriguez. Voltaremos a mencioná-lo mais tarde.
Em 1957, com apoio do governo americano, Batista resolveu criar uma corrida de protótipos na capital, em um circuito urbano com 5,21 quilômetros de extensão na região do Malecon, à beira-mar. Com pomposos cachês que chegavam a US$ 7 mil dólares (um valor bastante atrativo para a época), mais o pagamento de todas as despesas de viagem e hospedagem, o governo conseguiu atrair competidores do mais alto calibre, como o próprio Fangio, além de Stirling Moss, Carrol Shelby, Harry Schell, Alfonso de Portago e Phil Hill.
A primeira edição, realizada em fevereiro daquele ano, foi um sucesso: sem imprevistos e com diversas estrelas de Hollywood nos camarotes, teve vitória de Fangio, que pilotava um Maserati 300S #2, com Shelby em segundo. Por isso, nada mais natural que repetir a dose no ano seguinte, fazendo uma bela propaganda do país e de seu governo a esse mundão velho.
Só que a situação estava muito mais caótica no ano seguinte. Os simpatizantes do castrismo eram cada vez mais numerosos, na mesma proporção em que também aumentava a brutalidade da repressão de Batista. O governo queria usar a corrida para mostrar um clima de normalidade na ilha, reafirmando seu controle sobre os oposicionistas (alguém mais aí ouviu uma voz mental bradando “Bahrein”?).
Quando Arnol Rodriguez soube que Fangio voltaria para o GP de 58, apurou junto a fontes da imprensa em que data ele desembarcaria em Havana, bem como qual seria seu local de hospedagem. E esboçou um plano simples, porém perigoso: sequestrar o maior vencedor do esporte a motor até então, apenas para deixá-lo de fora da prova e avisar ao mundo que não, a situação em Cuba não estava nem um pouco controlada, e sim, o movimento castrista se encontrava de pé – e mais forte do que nunca.
Faustino Perez, responsável por todas as operações lideradas por Fidel Castro, contatou Oscar Lucero Moya, comandante das atividades do 26 de Julho em Havana, para começar a planejar a ação. A ideia inicial não era realizá-la no Hotel Lincoln, considerado um local inadequado para a “abordagem”, mas sim seguir cada passo do campeão desde sua chegada à capital, em 21 de fevereiro, para achar farejar o melhor momento para a emboscada.
A primeira tentativa foi na saída de uma emissora de televisão, onde Fangio concedera entrevista, mas havia muita gente nas proximidades. Naquela mesma noite, outra possibilidade se abriu enquanto o piloto fazia o reconhecimento do traçado, mas o plano foi novamente abortado, visto que havia muitos seguranças para protegê-lo.
Assim, Fangio teve a oportunidade de ir para a pista no domingo à tarde, cravando a pole position para a corrida, após marcar 1min59s2 na classificação. O tempo foi o mesmo do anotado pelo amigo Stirling Moss, mas o argentino ficou com a preferência por tê-lo registrado antes.
Aquela noite do dia 23 seria a última chance aos sequestradores. Ao saber que Fangio desceria para jantar fora com amigos, como havia feito em todos os outros dias, o grupo não teve dúvidas. Manuel Uziel foi o responsável pela abordagem descrita no início deste longo texto, e obteve êxito: com total discrição, ele levou Fangio até o carro e, de lá, para o cativeiro.
Enquanto trafegavam calmamente pelas ruas de Havana, tentando dar o mínimo de bandeira, os raptores pediam inúmeras desculpas ao pentacampeão, explicando que aquela era apenas uma manobra política e ninguém iria machucá-lo. Na casa escolhida, o ilustre argentino recebeu tratamento “igual” ao do hotel, com a exceção de que os mordomos e camareiras portavam armas de fogo. As instalações incluíam quarto individual, direito a banho, fazer a barba e se alimentar quantas vezes quisesse, com comida de primeira qualidade. Enquanto era observado por seus algozes, o “maestro” também fazia seu esquadrinhamento, iniciando uma conversa sobre os motivos de tudo aquilo que estava acontecendo.
Ao mesmo tempo, do lado de fora, sequazes de Fulgêncio Batista tentavam desesperadamente – em vão – encontrar pistas do paradeiro do grande astro da corrida, interrogando clientes e funcionários do hotel, além de conhecidos partidários do movimento 26 de Julho. Ninguém sabia ou revelou qualquer informação. Na imprensa, a repercussão foi a esperada, com manchetes em capas de jornais de vários países, incluindo o Brasil.
Nos Estados Unidos, é claro que a ação foi alvo de uma enxurrada de críticas. “É uma revolução pobre esta, que precisa golpear a liberdade sequestrando um estrangeiro que não tem a menor noção do que está acontecendo. Abordar um homem de bem, que jamais esperaria que alguém lhe fizesse mal em Cuba, e enfiar uma arma em suas costelas é tão corajoso quanto golpear um bebê com uma chave inglesa”, deblaterou o jornalista Morris McLemore, do Miami News. Por aqui, a ação também foi vista com maus olhos, tendo sido classificada como “palhaçada” pela nossa “Gazeta Esportiva”.
Na manhã de segunda-feira, Faustino Perez chegou ao cativeiro e teve uma longa conversa com Fangio, explicando detalhadamente os porquês da captura e indicando que ele seria libertado tão logo a corrida terminasse. Complacente com a causa, o piloto chegou até a ajudar seus supostos carrascos a planejar sua soltura. Foi dele a ideia de que as negociações ocorressem diretamente com a Embaixada Argentina, para não colocar os revolucionários em risco ao conversarem diretamente com representantes da polícia e do governo.
Do lado de fora, a tensão tomava conta do circuito citadino em Malecon, mas, ainda assim, os organizadores decidiram autorizar a realização do GP. O classudo Maurice Trintignant assumiu o lugar de Fangio no Maserati #2 e a largada para a prova foi dada. O pentacampeão ouviu a narração dos primeiros minutos pelo rádio, mas preferiu não saber mais da corrida, desligando o aparelho. Doze minutos depois da bandeirada verde, o competidor local Armando Garcia Cifuentes perdeu o controle de sua Ferrari na – vejam só a ironia – curva da Embaixada Americana, indo para cima de um grupo de torcedores aglomerados em volta da pista. Estava consolidada a tragédia, que terminou com sete espectadores mortos e outros mais de 40 feridos. Ao saber do ocorrido, ainda em cativeiro, Fangio suspirou em lamentação. O GP foi dado como encerrado e Moss, declarado vencedor, à frente de Masten Gregory.
Findo o evento (da forma mais tétrica possível), era a hora de libertar o campeão. Após contatos telefônicos com o embaixador argentino Raul Lynch, ficou combinado que Fangio seria deixado em uma esquina próxima à casa dele. Perto da meia-noite, o argentino se via novamente em liberdade. “Eles me deixaram com uma carta ao governo da Argentina, pedindo desculpas por me usarem para fins políticos. Foi mais uma aventura. Sei que o que os rebeldes fizeram foi por uma boa causa, então eu, como argentino, aceito”, disse o “maestro”.
Verba volant, scripta manent. Fangio também havia deixado um bilhete àqueles que chamou de “amáveis sequestradores”: “Esclareço que, durante meu sequestro amável, o trato foi completamente familiar, com atenções cordiais e somente me pediram desculpas por esta situação, alheia à minha pessoa”, escreveu. A missiva está exposta no “Museo de La Revolución” de Cuba.
Como todos sabem, a revolução eclodiu e gerou a queda do governo Batista em 59, promovendo Fidel Castro ao poder. O GP de Cuba chegou a ser novamente realizado em 1960, sob o slogan “GP da Liberdade”, tendo nova vitória de Stirling Moss. Quanto a Fangio, este já estava em fim de carreira, passando apenas a regozijar de seu prestígio e glórias nas pistas de todo o globo. Mas os destinos das partes ainda se reencontrariam: Fangio recebeu convites para visitar Cuba como “cidadão de honra”, e realmente voltou, em 1981, representando a Mercedes-Benz para firmar um acordo de fornecimento de caminhões ao governo.
Lá, o agora ex-piloto reencontrou “velhos amigos”, como Faustino Perez, em quem deu um caloroso abraço, e também conheceu pessoalmente, pela primeira vez, o próprio Castro, no mesmo Hotel Lincoln onde estava hospedado naquele 23 de fevereiro de 1958. Arnol Rodriguez, que havia se tornado ministro de Comércio Exterior, viajou à Argentina algumas vezes entre 82 e 84, aproveitando para visitar seu antigo captado. No ano de 83, 25º aniversário da chamada “retenção patriótica” (como os governistas de Cuba denominam o rapto), Perez enviou uma carta a Fangio, que termina com a assinatura “de seus amigos sequestradores”.
Já em 92, foi a vez do próprio Fangio enviar condolências pela morte de Faustino, mesmo ano em que convidou Rodriguez para conhecer sua cidade natal, Balcarce, em uma cerimônica de celebração aos seis anos do museu em homenagem ao multicampeão. Arnol retribuiu a cortesia doando uma réplica do troféu do GP de Cuba de 58 ao acervo, aquele que o argentino nunca pôde disputar.
Três primaveras mais tarde, Rodriguez foi um dos últimos a visitar o já doente ex-piloto, que viria a falecer no 17 de julho daquele ano. No funeral do gênio, chamava a atenção uma opípara coroa de flores, expressando as condolências do camarada Fidel Castro.
Disponível no(a):http://tazio.uol.com.br/
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