Você entra em sua viatura que estava muito bem antes de estacioná-la. Gira a chave e nada acontece. Bate a chave mais umas vezes, sem retorno. Resolve parar para pensar um pouco, vai fazer qualquer outra coisa, chega até a conversar com aquele objeto sem alma. Tenta dar a partida de novo e desta vez o carro pega de primeira. Há quem visite o mecânico depois do ocorrido e, para surpresa geral, não encontra nada de anormal. A vida segue e aquele carro segue como se nada houvesse acontecido.
Situações que poderiam facilitar a ocorrência de uma quebra se enfileiram em sua carreira e o fiel companheiro as enfrenta sem que você tenha qualquer receio de que aconteça algo.
Alguns defeitos nem de longe comprometem o funcionamento do carro e são apenas incômodos. Como aquela famosa luzinha de advertência no painel que fica apagada por um tempo e depois volta a acender. Carros mais antigos com relógios analógicos, por exemplo, podem ser uma fonte de pegadinhas em seus donos. Às vezes ficam anos sem trabalhar e subitamente voltam a funcionar como se nada ocorresse. Em tese, o dono até poderia mandar desmontar amplas extensões do companheiro e solucionar o problema, mas isso acaba caindo naquela situação em que o tal defeito acaba não compensando o trabalho e, por vezes, resolve-se por si só.
Nossos antepassados costumavam por vezes conversar com os poucos cavalos de potência que os locomoviam. Por vezes o animal parecia entender aquilo que lhe era dito em uma linguagem completamente estranha, e acabava de certa forma sentindo que ia ser reconhecido por aquele esforço a mais que fizesse. Em certas ocasiões, demonstrava claramente quando ia ou não cooperar, mas por vezes o bicho parava do nada, sem ter qualquer doença aparente, como se quisesse apenas sacanear seu dono. Óbvio, pois animal possui personalidade e a própria palavra latina anima, da qual vem o termo, significa “vida”, “espírito”, “fôlego vital”, entre outras coisas que demonstram que aquilo sente, pensa com autonomia e faz decisões por si mesmo o tempo todo, apenas delegando parte de suas decisões a quem os conduzia.
Mas carro não é animal. Pise decididamente no acelerador, mire uma parede e ele nada fará para conter sua decisão equivocada, muito menos irá tentar te ajudar quando estiver ferido. Ele também não demonstra também qualquer troca de confiança. Você pode confiar no carro, mas porque é algo bem projetado e tem manutenção regular. Mas o carro não confiar em você? Bem, só se ele estiver repleto de dispositivos eletrônicos que interferem diretamente na condução, mas isso não é assunto deste texto.
Mesmo assim, fica a sensação de que ele de alguma forma nos absorve e cria vida conforme interagimos com eles. Por vezes até pedimos proteção para aquele bem inanimado, como mostram os tantos símbolos de fé pendurados nos retrovisores internos.
E essa aura de inexplicável que adicionamos a algo mecânico por vezes resolve se manifestar, e traiçoeiramente. Tudo está em ordem, mas o esperado não acontece. Decepção. Calma, é apenas uma máquina. Mas quem se lembra disso na hora, ainda mais se estiver em algum lugar mais isolado e perigoso?
E nessas horas, vale até mesmo repetir aquilo que os antepassados faziam com os animais. E por vezes o apelo para a psicologia dá certo e ele pega na primeira batida de chave como se nada ocorresse. Aqui mesmo no Jalop temos a interessante história do leitor corcel75 falando sobre o carro que lhe dá seu nick:
Alguém mais além dessa pessoa que vos fala conversa com seu carro? Eu converso com os dois, o Corsa e o Corcel. Esses dias o Corcel tava reinando pra pegar, virava o arranque, o motor girava mas nem sinal. Aí resolvi utilizar um pouco de psicologia com o carro. Fiz um carinho no painel do bicho e falei: “Pô cara; desculpa se tu dormiu aqui fora, tu sabe que aquele teu irmão mais novo é fresco demais. Liga ai e vamos dar umas voltas, de leve, só pra curtir”. Rapaz, eu até me arrepiei quando girei a chave de novo. O desgraçado ligou de primeira, aí tive que fazer o que prometi. Fui até a cidade mais próxima (45km) com ele e voltei, isso em uma hora e meia +/-; só curtindo o Corcelão. Eu sei o que Arnie Cunningham sentiu quando viu o Plymouth Fury 58.“Corcel” é um dos sinônimos de cavalo que nosso idioma oferece. Surpreendentemente, comportou-se como o animal que o batizou. Em outras ocasiões igualmente místicas, o carro parece captar o estado de espírito das pessoas que o ocupam. Desocupa-o a pessoa que parece mais “carregada” e ele liga exatamente da mesma maneira que ligou outras tantas vezes.
Nenhum automóvel é perfeito e todos têm seus defeitos. Os autoconsertáveis, no entanto, passam a impressão de serem bastante sensíveis. Fica parecendo que o carro te diz algo como “sou bem projetado, mas olhe por mim com a paranoia que cuidaria de uma jabiraca qualquer e preocupe-se comigo como se eu fosse dar problema na próxima esquina”. Sim, caímos de novo na personalização do inanimado e chegamos a projetar nele uma alma tão ciumenta quanto a de Christine. Porém, depois de pregar a peça, tudo volta ao normal.
E o seu carro, também se autoconserta?
Fonte: jalopnik
Disponível no(a): http://www.jalopnik.com.br
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