28 de set. de 2011

Quem são, o que pensam e o que ouvem os maníacos por som automotivo


Durante um fim de semana chuvoso em maio, no Recanto da Cascata, quilômetro 62 da Raposo Tavares, em São Roque (SP), rola uma espécie de rave. Mas não é em busca das carrapetas de algum DJ gringo que comparecem as cerca de 20 mil pessoas. E sim para conferir a performance de 160 competidores no São Roque Tuning Show, etapa do campeonato organizado pela MTM, empresa que congrega maníacos por som automotivo. No início da manhã de domingo, casaizinhos, famílias e crianças chegam para o evento – 60% da população é de espinhentos moleques de boné.

O corpo atravessado por frequências feito uma torta de frango com catupiry girando num microondas, o repórter colhe impressões tentando entender como funciona o pega-pra-capar sonoro. São dezenas de modalidades, divididas por duas principais: SPL, onde se mede, em decibéis, o sound pressure level, ou seja, o maior volume possível dentro de um carro fechado; e trio-elétrico, em que os falantes são voltados para fora do veículo. No primeiro caso, nem música é usada – durante 45 segundos, o player toca um CD com uma freqüência só (o carro está vazio; do contrário, o ocupante ficaria surdo). No segundo caso, a música vai ao gosto musical do freguês. O repórter circula por uma tenda lotada de veículos com portas e capôs abertos. Chega em primeiro quem soar mais alto.
O inferno, enfim. Para que fui trazer o gravador?

O despertar da Besta

Zonzos pelo som, zumbis sem carro zanzam pra lá e pra cá, zapeando os modelos tunados que melhor convêm às suas câmeras. Aqui, alto-falantes são tão clicados quanto a Mona Lisa, no Louvre. De longe, o que mais chama a atenção é a Ford Rural de João José Luiz, 44, natural de Pedreira (SP). Guia turístico, o compadre investiu R$ 40 mil em sua caranga, trabalhada pelo amigo Hamilton Cabeça, 27. Até onde consigo ouvir, foram instaladas 12 cornetas Roadstar, 4 MTX de 15”, 6 falantes 6 x 9” Pioneer, 1 CD Roadstar 1200 W, 1 pirâmide de 2000 w e 1 pirâmide de 1200 w. Para que tanto falante, meu Deus?
Para colocar no talo um bom Zezé di Camargo & Luciano.
Mas o que João José mais curte é Charlie Brown Jr., aquela banda de skatistas marrentos que fazem propaganda para a Coca-Cola. Ecletismo é isso: “Escuto de tudo”, afirma ele. João José demorou 9 meses para esculpir sua Rural. Casado com Mirtes, 29 anos, 2 filhos – “eles adoram”, diz ela –, JJL tem uma casa localizada exatamente na praça principal de Pedreira. “Ninguém faz mais barulho que eu”, jura o dono da Rural, que chegou a um recorde de 146.9 decibéis no trio-elétrico e 172 dB no SPL. Quase o recorde brasileiro, pertencente a uma Besta.
Uma Besta 1995, no caso, propriedade de Diógenes “Roncão”, 42, de Santa Bárbara D’Oeste (SP). Totalmente travada com cimento e madeira, acrílicos de 21mm no lugar dos vidros, portas fechadas com rosca, os 24 falantes da Besta já atingiram 175.2 dB. Lembrai-vos, leitores, de que um Boeing decolando vai a cerca de 150 dB – e que a exposição a níveis elevados de som leva a uma progressiva surdez. Sem dar ouvidos a isso, Diógenes leva sua Besta com o auxílio de um guindaste até a arena de competição. Assim como a Belina 1972, verde e concretada, de Kleber Barcelos, 22, que com sua loja Electricsound vem vencendo em várias categorias. Ele compete há 6 anos, “por hobby, para fortificar o nome da loja e pelo desafio em tentar um volume cada vez mais alto”, e trabalha desde os 9 com som. Especialista em tweeters, é genérico ao eleger preferências musicais: “Instrumental, música eletrônica, black, essas coisas”.
A maioria dos competidores é de donos de loja de som automotivo. Exceção é Billy Jackson, 30, que está ainda equipando seu Fusca, tunado com asas-gaivota, hélice de helicóptero e nitrogênio. Billy, auto-intitulado “presidente da revista Mundo da Fama” e assessor de Sergio Mallandro, no meio do gelo seco diz que seu VW 1971 custa uns R$ 25 mil – R$ 5 mil só na sonzeira. O veículo, de leve, adentra o mundo da fama, seja pela porta da frente, seja pelos fundos. “As Mallandrinhas já empurraram minha Fuca”, estufa o peito Billy. “Gosto de ser olhado”, revela o marqueteiro. “Gastei mil reais só para cromar o motor. É bom para a Mundo da Fama”, ensina.
Outra que também entra no mundo do som rodante é Penélope Charmosa, quer dizer, Carla Cristine, 23. Ela tem o maior orgulho de seu Ka, que levou investimento de R$ 4,5 mil para ficar todo cor-de-rosa, do painel ao extintor de incêndio, passando por faróis e neons. É das poucas mulheres a concorrerem em tuning: “Em breve vou pro SPL”, ameaça, doce, a moça. Mas, por aqui, Alessandra de Abreu, 25, é a única mulher. Acompanhada pelo marido Marcelo Salviati, dono de loja, eles competem com um Pointer 1995. Explicação? “Paixão”, diz ela. “Amor”, emenda Marcelo, que gosta de Legião Urbana. O casal sonha com o carro concretado próprio. “A gente tem uma Marajó 1986 que já levou acrílicos e tem as portas aparafusadas para agüentar o tranco”, contam.

“Tsk, tsk”, faz Dirceu Pedrero Jr ao ouvir coisas como essas. Ele é presidente da Iasca Brasil – uma derivação da Iasca norte-americana, que foi a primeira organizadora de eventos para som automotivo, hoje transformada numa espécie de elite. A Iasca Brasil é a única associação de fãs do som automotivo que privilegia o quesito “qualidade”. Em seus campeonatos – disputados por pouco mais de uma dúzia de aguerridos competidores –, há cinco juízes que decidem entre vários itens (instalação, áudio, pressão, entre outros) qual sistema sonoro mais se aproxima da perfeição sobre quatro rodas. Para isso, não usam, como nos campeonatos de trio-elétrico, músicas como “Flashdance”, e sim quartetos de Beethoveen, apreciados de olhos fechados dentro do veículo, em volume baixo, ao lado do proprietário.
Os adeptos da “qualidade sonora” odeiam, do fundo de seus tímpanos, os praticantes de SPL e trio. “Não passam de um bando de playboys que gostam de barulho”, reclama Dirceu, apreciador de Louis Armstrong. Dirceu elogia os esforços de quem detona tweeters para aumentar uns décimos de decibéis – “é preciso ter muito estudo para isso” –, mas lamenta que as competições de SPL e trio-elétrico não se preocupem com qualidade: “Quem é que ouve essa barulheira no dia-a-dia? Nós da Iasca propomos que qualquer um pode ter um som bom em seu carro. Não é necessário R$ 40 mil reais para deixar os outros surdos”, detona ele.

Som no caixão

Se nas competições de qualidade são necessários cinco juízes para saber, em uma hora e meia, qual é o melhor sistema de som, nos campeonatos de SPL e trio-elétrico basta um computador que meça a pressão sonora, 45 segundos – e um só juiz. Aqui, o fiel da esbórnia é Luiz Henrique Meda, 29, que há 8 fundou a MTM, uma das 22 empresas que organizam campeonatos de SPL e trio-elétrico. Luiz já organizou cerca de 160 eventos. Ele calcula existirem 12 mil competidores pelo Brasil, divididos em duas facções: os do interior privilegiam o trio elétrico; o pessoal das capitais, SPL. “É um esporte”, anota. Conhece alguém que ficou surdo? “Nada, discoteca é muito pior.” E o que ouve? “Hein?” O que ouve? “Ah, de tudo!”, repete.
Há quem prefira guiar seu barulho sozinho a ficar quieto e mal-acompanhado. Rodrigo de Freitas, 27, investiu R$ 35 mil para turbinar seu Vectra CD 1997 – que vale uns R$ 21 mil –, R$ 25 mil só em som. O bólido leva DVD player, vídeo, uma tela de 15” no porta-malas, 2 woofers, 4 cornetas, 4 tweeters, neons… Fã de tecno, Rodrigo diz que a namorada largou dele de ciúme. Do carro? “Não… das meninas que chegavam nas competições…”, sopra, misterioso. Já Gil Silva desfila seu Buggy na categoria “criatividade” – onde também competem coisas tipo geladeiras ou caixões equipados com falantes. “A mulherada curte”, diz, pimpão, municiado com 8 cornetas que alternam flashbacks românticos e arrancadas de Fórmula 1. Allan Barros prefere funk carioca. Conforme Luiz Meda – “o cliente começa competindo por uma loja, e, quando vê, ele mesmo tem uma loja” –, Allan era consumidor, em 1998, até se transformar em vendedor e instalador. Prefere os MCs dos morros – cujos nomes desconhece – por causa do “pancadão”. Torrou R$ 34 mil reais para transformar seu Kadett 1990 na montaria da Egüinha Pocotó do MC Serginho.
No fim da festa, uma chuva de granizo. A multidão se enfia sob os imensos toldos de lona – e vários carros também. O cheiro de lingüiça frita se mixa ao de suor e dióxido de carbono. The Weather Girls (“It’s raining man”), Ivete Sangalo (“Amar a pé é lenha”…), Tchakabum (“Calhambeque”), sertanejos, dance, hip hop, funk Miami, trilhas de videogame e outros objetos não-identificados convergem sob uma mesma suruba sonora. Entrando no clima, um trio de elétricas popozudas rebola do lado de um porta-malas equipado com doze cornetas. É um pôster de oficina mecânica ao vivo. Os desbravadores do som do futuro conversam aos berros, as mãos nas orelhas, em concha, a chuva vai longe… E o repórter se lembra, feliz: aquele par de tampões de ouvido ainda estão no bolso.
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Ronaldo Bressane é escritor e editor da revista Alfa. Texto produzido há cinco anos e silenciado.

Fonte: jalopnik.
Disponível no(a):http://www.jalopnik.com.br/

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