9 de mar. de 2012

O dia em que um outro carro americano venceu a Ferrari em uma corrida de endurance



A Le Mans de 1967 está distante, mas não tão distante pois estamos no último dia de 1950. A cidade de Sebring, na Flórida, vive a expectativa da primeira prova de longa duração a ser disputada sob regras internacionais nos Estados Unidos.

O campo de provas é Hendricks Field, uma base da Força Aérea americana que se tornaria o atual circuito de Sebring. Trinta inscrições foram feitas por pilotos dos Estados Unidos e do Canadá. A diversidade de carros era alta e a presença de pequenos esportivos europeus bem forte, refletindo a onda do pós-Guerra em que esses carrinhos eram a última palavra no outro lado do Atlântico. A prova também pode ser considerada a estreia do circuito que no futuro viria a ser conhecido por Sebring International Raceway, e que sediaria a partir de 1952 as 12 Horas de Sebring.
A corrida de estreia duraria seis horas e, com a diversidade de veículos alinhados para largar, havia a necessidade de se fazer justiça. Em vez de pensar como hoje, em que carros competem entre si dentro de uma categoria, usou-se o conceito francês de handicap, tal qual uma regata ou um torneio de golfe. Com isso, todos os competidores ganhavam a chance de ser o vencedor geral da prova. Sendo disputada sob regras internacionais, nada melhor do que um sistema à época amplamente usado no Velho Mundo.
Com isso, a cada carro era atribuído um índice de voltas para a vitória conforme o tipo de motor que possuía e a presença ou não de sobrealimentação, com a indução forçada obrigando a se percorrer uma maior distância. Por causa disso, Ralph Deshon, um dos inscritos, desistiu de levar seu MG TC com compressor e optou por um Crosley Hot Shot cuja única preparação foi uma lâmina de plexiglas no lugar do para-brisa e a pintura manual do número 19.

O carro, pertencente a Vic Sharpe, dono de uma concessionária da marca, só entrou na pista por sugestão de Tommy Cole, amigo em comum e que competiria com o Allard-Cadillac de número 34. Como Sharpe não tinha licença de piloto, Deshon iria revezar com Fritz Koster. O clima de improviso aumentava com o fato de o Hot Shot correr com pneus emprestados do mesmo Cole.
Aumentando o clima de regata em terra firme, as marcações do circuito eram feitas com fardos de feno e uns poucos sinais. Já os boxes tinham clima de boteco, sendo feitos com a junção de mesas dobráveis.
A largada, dada às 15 horas, foi feita à Le Mans por 28 carros parados a 45 graus. O que chamou a atenção foi o erro de John Bentley, que partiu com seu Simca sob o número 30 em sentido oposto ao do circuito.

Com passo de tartaruga, o Hot Shot tomou a liderança logo na primeira hora de prova, sendo perseguido pela Ferrari 166 MM de número 55 guiada por Jim Kimberly. Em terceiro ia o Fiat 1100 de número 20 de Robert Keller e em quarto, o Allard de Cole, que chegou a pilotar o Crosley poucas horas antes.
Com o passar das horas, competidores ficavam pelo caminho. O primeiro a abandonar foi o Volkswagen reencarroçado de Kurt Hildebrand, que competia com o número 11, parado por falta de pressão do óleo. Um Allard-Mercury de número 27, guiado por Harvey Beeler e Jim Cunningham, foi o segundo a abrir o bico, na segunda hora da prova. A terceira hora reservaria outras surpresas, quando Tommy Cole deixaria o Allard-Cadillac morrer. Ao ser empurrado por um mecânico, veio a desclassificação por receber assistência externa, algo que gerou protesto da equipe. Com o decorrer da prova, parariam também o Jaguar XK120 de Tom Brown e Charles Hassan, correndo com o número 35, por problemas nos freios, e o MG TD de número 32, de Hubert L. Brundage e Bill Cook, com o motor estourado.
Na mesma terceira hora de prova, o carro 17, a Ferrari 195 S guiada pelo americano Luigi Chinetti em parceria com o italiano Alfredo Momo, iniciava o que seria uma corrida heroica, parando várias vezes no box por causa de perda de óleo. Ainda assim, conseguiu completar 598 km, ser o sexto carro a cruzar a linha final e ter um sétimo lugar pelo handicap.

A disputa principal da prova acabou sendo italiana (nos carros) e americana (nos pilotos). Pelo segundo lugar, o Fiat 1100 que Keller guiava com o também americano Paul Farrago assumia uma briga aparentemente desigual com a Ferrari de Kimberly, que a revezava com Marshall Lewis. Só com a chegada da noite é que Maranello ultrapassaria Turim na classificação.

Em regatas, o primeiro a cruzar a linha de chegada é conhecido por fita azul. Na terra firme de Sebring, tal condição coube ao Allard J2 número 8 de Fred G. Wacker e Frank Burrel. Para ficar ainda mais feio para a Ferrari, a 166 MM de número 55 cruzou em quarto, uma volta atrás do primeiro a cruzar e também atrás do Allard J2 de Jean Davidson e George Weaver, correndo com o número 21, e do Healey Silverstone Special guiado por Phil Waters e Bill Frick. Os dois Allards e o Healey cruzaram a linha final na mesma volta e, para americano ficar contente, todos usavam motor Cadillac.
Porém, como em prova por handicap nem sempre o primeiro a cruzar a linha de chegada é o vencedor, o grande vitorioso do dia estava 20 voltas atrás e foi o 14º a receber a bandeirada. Era o Hot Shot de Deshon e Koster, que em momento algum perdeu a ponta pelo índice matemático. E a humilhação de Maranello repetiu-se também na planilha, pois nesse quesito a 166 MM de Kimberly e Lewis ultrapassou o trio com mecânica Cadillac, mas ficou atrás do lerdo Crosley.

A favor do carrinho feito em Cincinnati, o próprio conceito de handicap. O filhote de cruz-credo, primeiro carro esportivo americano do pós-Guerra, deslocava apenas 721 cm³ e, por causa disso, precisava percorrer uma distância bem menor que a das ferozes Ferraris para levar o caneco para casa: 463,9 km contra 585 km das italianas. Além disso, sua média de velocidade de 77,2 km/h durante a corrida é boa se pensarmos que o Allard-Cadillac de Wacker imprimiu uma média de 104,5 km/h usando um carro com motor 7,5 vezes maior.
A favor do roadsterzinho estava o baixo consumo, que lhe permitia ficar mais tempo na pista, e também o comportamento dinâmico. Deshon pisava fundo e considerava o carro tão fácil de dirigir que conseguia fazer a maior parte das curvas sem praticamente tirar o pé do acelerador. Era sua estreia em competições, e algumas demoras nas trocas das marchas, que não eram sincronizadas, custaram um desempenho ainda melhor. Koster conduzia mais conservadoramente e poupava o carro, mas também usava pouco o freio, preferindo reduzir velocidade em curvas com o uso ativo da resistência aerodinâmica.

A Vic Sharpe coube a constatação de que seu Hot Shot foi usado no limite. Na volta para casa, o carrinho perdeu pressão do óleo e parou. Abriram o motor e constataram duas coisas: que ele girou a 7.500 rpm durante quase toda a corrida e que as engrenagens da bomba de óleo foram para o vinagre. Ainda assim, foi só instalar uma bomba nova que o Hot Shot já estava em ordem para as fotos do dia seguinte.

Para a Crosley, foi um impulso para a competição de longa duração, o que se traduziu em um Super Sports (versão mais luxuosa do Hot Shot) altamente modificado indo para Le Mans em 1951, mas que não completou a prova por defeito em um regulador de voltagem. Já no mercado de preparação, pode-se considerar o Hot Shot como um pioneiro da atual onda americana de preparação de carros compactos com uma antecipação de boas décadas, com o surgimento de peças capazes de levar o motor para mais de 100 cv, marca boa até hoje se pensarmos na pequena cilindrada.
Fonte: jalopnik
Disponível no(a):http://www.jalopnik.com.br
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