O automóvel se tornou o principal instrumento de arrecadação do país. De cada R$ 100 que o governo recolhe em impostos, R$ 6 vêm de carros
Nessa visão distanciada de mundo, os humanos seriam escravos que alimentam os automóveis quando eles têm sede, dão banho quando estão sujos e curam seus ferimentos quando eles se machucam.
Se um disco voador descer no Brasil, os ETs nem terão dúvida: quem manda aqui é mesmo o carro. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos 15 anos a frota de automóveis do país cresceu 15%. Só no ano passado 3,3 milhões de novos automóveis ganharam as ruas, alta de 10,5% em relação ao ano anterior. Quem pode anda de carro. Mas anda mal. Em São Paulo, no horário de pico, a velocidade média é de 8 quilômetros por hora. A pé é mais rápido. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) calcula que, em cidades com mais de 100 mil habitantes, 32% das pessoas gastam pelo menos uma hora no trânsito para trabalhar ou estudar. “Não tenho como usar transporte público para chegar ao trabalho”, diz o matemático e engenheiro Francisco Manuel Pires Neto, de 52 anos. “Já tentei deixar o carro em casa, mas é inviável.” Ele mora em São Paulo e trabalha em Mogi das Cruzes, cidade vizinha. Gasta 40 minutos por dia dirigindo e R$ 784 por mês. Desse total, cerca de R$ 200 vão para os cofres do governo.
Sim, porque, se Pires Neto depende demais de seu carro, ele não está sozinho. Seu Kia Soul é indispensável também para Dilma Rousseff, a presidente da República. Para ela, para o governador e para o prefeito de sua cidade. A administração dos três depende do dinheiro arrecadado direta e indiretamente pelo carro – mais que de qualquer outro produto ou setor empresarial. Como atividade, a indústria automobilística e suas ramificações empatam com o trilionário sistema financeiro no recolhimento de impostos federais. Se somarmos taxas, tributos, multas, contribuições e toda sorte de artifícios usados pelo governo de Estados e municípios para tirar dinheiro da manada automotiva, o carro é – de longe – a maior unidade arrecadatória da República, de acordo com um levantamento exclusivo realizado por ÉPOCA.
MOTOR DA ARRECADAÇÃOO automóvel deverá recolher em 2011, nas três esferas do governo, o equivalente ao PIB do Uruguai
Pendurado em seu automóvel – e nos mais de 25 milhões que estão em circulação no país –, o governo federal recolheu em 2011, de janeiro a agosto deste ano, R$ 32 bilhões, ou 22% da arrecadação dos principais tributos federais. Para os Estados, o automóvel rendeu R$ 30 bilhões até agosto, arrecadados com o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e com o Imposto sobre Consumo de Mercadorias e Serviços (ICMS), que incide sobre todas as fases da vida do carro: fabricação, compra, licenciamento, reparo e abastecimento. Em 2009, o ICMS da venda de combustíveis representou, sozinho, 40% da arrecadação do Estado do Amapá. Parte do dinheiro é repassada às prefeituras – que não recolhem imposto com o carro, mas também ganharam mais de R$ 600 milhões com multas. Somando tudo ao longo deste ano, a projeção é que os carros rendam ao Estado brasileiro astronômicos R$ 81 bilhões, ou algo como 2% do Produto Interno Bruto brasileiro. Ao todo, de cada R$ 100 recolhidos em impostos no país, um único produto – o automóvel – responde por aproximadamente R$ 6. “O carro é a prima-dona da arrecadação”, afirma Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal.
Quando você compra um Toyota Corolla por R$ 78 mil, o governo recolhe 31% em tributos. Na Alemanha, o carro novo paga em média 16% e, nos Estados Unidos, 6%. “O Brasil cobra impostos em cascata e isso encarece muito produtos de fabricação complexa, como o carro”, afirma João Eloi Olenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). Ao encher o tanque do carro com gasolina, o brasileiro paga 53% da despesa em impostos. Dilma e seus colegas podem não entender de molas e parafusos, mas são eles que recebem 32% do que se paga à oficina mecânica. Mesmo se você decidir negar a natureza do automóvel e deixá-lo imóvel na garagem de casa, ainda assim será obrigado a pagar o IPVA, em torno de 4%.
Pela Constituição, o dinheiro dos impostos recolhidos com os automóveis não é vinculado a nenhuma aplicação específica. Vira dinheiro livre, aguardado com ansiedade pelos governadores. A ponto de eles terem antecipado para o primeiro trimestre a cobrança do licenciamento dos carros usados, que costumava ser escalonada ao longo do ano. Com esse artifício, adotado a partir da década passada, os Estados reforçaram o caixa no período em que a atividade econômica é mais fraca. A classificação dos carros com motor flex também atendeu à lógica da maior arrecadação. Em São Paulo, esses modelos pagam IPVA de 4%, como os carros a gasolina (que poluem mais), apesar de consumirem principalmente álcool. Se o imposto do flex fosse igualado ao do carro a álcool (3%), o Estado perderia receita. Calculado sobre o valor de mercado do carro a cada ano, o IPVA premia os modelos antigos – aqueles que, em tese, poluem mais o ar, quebram no meio da rua com maior frequência e oferecem menos proteção em acidentes. Quanto mais velho o automóvel, menor é seu valor de mercado e, portanto, seu tributo. Faz sentido para o caixa. Nenhum para o planeta.
O casamento de interesses entre montadoras e o Estado brasileiro começou em 1956 – um enlace no qual o dote foi pago pelo governo, num bolo de noiva chamado Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia). O grupo foi formado para substituir as importações de produtos de alto valor, que desequilibravam nossa balança comercial. Naquele ano, o país tinha 811 mil carros, todos importados. Gastava-se mais com a importação deles do que com petróleo ou trigo. O Geia proibiu a importação de carros e concedeu créditos e isenções às montadoras. “A política de incentivos para atrair empresas não foi muito diferente da adotada em países como México e Argentina”, diz José Roberto Ferro, presidente da consultoria Lean Institute do Brasil. “Só os Estados Unidos, que inventaram as montadoras, abriram mão de regular o mercado no início.” O Brasil atraiu 11 montadoras entre 1956 e 1960. Atrás delas, surgiram fábricas de peças, oficinas e concessionárias. “Antes do governo Kubitschek, o país era essencialmente agrário”, diz Luiz Carlos Mello, ex-presidente da Ford. Graças ao automóvel, o Brasil mudou. Protegida pelo mercado fechado, a indústria nacional cresceu nos anos 1970. Na década seguinte, Estado e montadoras amargaram estagnação. Entre 1980 e 1981, as fábricas demitiram 20 mil pessoas. Os protestos na porta das montadoras de Santo André, São Bernardo e São Caetano – o ABC paulista – forjaram o movimento sindical brasileiro. Dali surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT), em torno da figura do líder operário Luiz Inácio Lula da Silva. A inércia do mercado automotivo dos anos 1980 foi quebrada, novamente, a golpe de caneta. Em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello chamou os carros nacionais de “carroças” e reabriu o mercado às importações. A concorrência estrangeira e a crise econômica do congelamento das cadernetas de poupança derrubaram as vendas das montadoras locais em 10%. Para recuperar mercado e crescer, elas foram favorecidas por uma... lei de incentivo, que baixou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e inaugurou a era do carro popular.
No fim de 2008, diante da crise econômica mundial provocada pela quebra de bancos americanos, o presidente Lula reduziu novamente o IPI dos carros. “O governo foi muito hábil”, diz João Sabóia, professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A indústria bateu recorde de vendas e, no segundo semestre de 2009, o desemprego já tinha voltado aos níveis do ano anterior.” Isso acontece porque o carro tem uma capacidade quase única de irradiar riquezas. Certos setores, como a agricultura, até geram mais empregos que as montadoras. Mas não passam a contratar mais pessoas diante de um pequeno estímulo nas vendas. “O setor automotivo é fundamental para a economia porque as montadoras pagam acima da média do país e porque, atrás delas, há atividades com alta geração de empregos, como fábricas de autopeças e rede de oficinas”, diz Fabio Freitas, pesquisador do grupo de Indústria e Produtividade da UFRJ. De acordo com a Anfavea, o setor gera 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos – o equivalente a 3,4% dos postos de emprego formal do país.
Mais do que os empregos, porém, é a polpuda fatia dos impostos recolhidos com os carros que explica a deferência histórica do Estado com o setor automobilístico. O governo brasileiro trata como patrimônio os postos de trabalho criados pelas montadoras que se instalaram no Brasil e as fatias de mercado dessas empresas, porque são essas fatias que alimentam o recolhimento de impostos. Recentemente, a defesa agressiva desse patrimônio ficou evidente quando, em setembro, o governo tentou – para a felicidade das montadoras instaladas no país – aumentar em 30 pontos porcentuais o IPI que incide em carros importados de fora da América Latina (muitos dos carros que circulam no Brasil vêm da Argentina e do México). A medida foi suspensa na última quinta-feira pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou obrigatório o prazo de 90 dias para a medida vigorar.
A história recente ensina que contrariar as montadoras é politicamente arriscado. Mesmo se as fábricas não pressionassem o governo, seu ponto de vista já está enraizado na cultura do público e na estrutura política do país. Quando assumiu o governo do Rio Grande do Sul, em 1999, Olívio Dutra, do PT, quis rediscutir os incentivos à implantação de fábricas da Ford e da General Motors no Estado, acertada na administração anterior. A Ford não fechou acordo e foi para a Bahia. Desgastado, Dutra nem sequer disputou a própria reeleição. “O rompimento com a Ford teve impacto mesmo dentro do PT, mas não me arrependo”, diz ele. “Os sindicatos que pedem isenção de impostos para gerar empregos não estão vendo a floresta, estão vendo apenas uma árvore.” Desde que o PT assumiu a Presidência, em 2003, o ponto de vista dos sindicatos tornou-se oficial. A base sindical do governo luta por suas vagas, as montadoras defendem seu mercado – e o governo protege sua arrecadação. Essa aliança faz do carro brasileiro uma entidade quase intocável.
O carro como o conhecemos – uma máquina com motor a combustão, de propriedade privada, usada no deslocamento diário – está em crise no mundo inteiro. Seus benefícios são cada vez menores. Ele é um grande gerador de empregos, mas essa tendência é de queda. Com o aumento de produtividade, a tarefa que era feita por nove pessoas, em 1960, agora depende de apenas uma (leia o quadro abaixo). O congestionamento nas grandes cidades cobra um preço alto. Parados no trânsito, funcionários qualificados, que poderiam gerar riqueza em seu lugar de trabalho, são reduzidos a figurantes de uma lenta procissão. Segundo um estudo do Citigroup, o Brasil desperdiça 5% da produtividade de sua economia com engarrafamentos, ou algo como US$ 30 milhões.
Em outras palavras, o carro parece estar pegando de volta toda a receita que gera para o governo. Um impasse desse tamanho exige uma ação do Estado. Mas o Estado brasileiro ainda vê o automóvel como há 50 anos. Depende dele de forma excessiva. “O consumo de carros é saudável para a economia, mas as pessoas deveriam ter alternativas de transporte e incentivo financeiro para deixá-los em casa”, diz o ambientalista Fabio Feldmann. Assim poderíamos nos dedicar aos carros por vontade própria. Não por escravidão.
Os automóveis pagam impostos no lugar onde são fabricados e, anualmente, no domicílio
Disponível no(a):http://revistaepoca.globo.com/
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