12 de set. de 2011

Brasil abaixo de zero

Lugar mais frio do país, a Serra Catarinense pode até brindar sua visita com neve. Só não esqueça de levar a sorte na bagagem

Por Ricardo Sant'Anna // Fotos de Guilber Hidaka
Guilber Hidaka
Geada supera os 10 cm de altura durante as manhãs frias de São Joaquim (SC)

Lembro como se fosse hoje da primeira vez que vi neve pela televisão. As ruas brancas, carros cobertos de gelo e as luzes da Times Square, em Nova York, encheram os meus olhos. Criança curiosa que era – e ainda sou – não hesitei em perguntar à minha mãe: “Quando vai acontecer isso no Brasil?”.
Ela sentou ao meu lado e disse: “Muito difícil, meu filho”. Hoje, como jornalista, compartilho com meus colegas certa inveja das revistas europeias e americanas, que encontram belos cenários com neve para fotos espetaculares em boa parte do ano. Mas como encontrar neve neste país tropical ou, no máximo, subtropical? Difícil é, mãe, mas não impossível...

Quem nasce na Serra Catarinense, um dos lugares mais frios do Brasil, está acostumado com uma vida, digamos, pouco brasileira. Em vez de castelinhos de areia, o negócio das crianças é fazer bonecos de neve. Onde? Nas cidades de São Joaquim, Urubici, Urupema e Bom Jardim da Serra. Autoesporte passou três dias na região em um dos finais de semana mais frios do ano, quando a temperatura bateu 7º C negativos. A bordo de um Land Rover Discovery 4 TDV6, desbravamos 850 km, saindo de São Paulo com uma temperatura de 18º C e fomos recebidos por 10º C, o que os catarinenses da serra consideram ameno.


Guilber Hidaka
Termômetro marca 0º C, enquanto estalactites se formam na grade dos carros
Os caçadores da neve perdida
A noite cai, e a expectativa toma conta de São Joaquim no sábado, com previsão de neve. Cinco passos na rua são suficientes para ouvir a palavra “neve” ao menos uma vez. Bonecos feitos de gesso imitam os que estamos acostumados a ver só em filmes. Eles estão espalhados por todas as partes e, por um momento, a sensação é de estar fora do Brasil. O bom e velho Fusca no meio do cenário nos conduz à realidade novamente. Nos restaurantes e hotéis, os olhares se voltam para as janelas a todo instante, e qualquer movimento no céu é motivo para correr até a rua e tentar encontrar um floco branco vindo lá de cima. Todos – inclusive nós – estão lá para ver neve.

Guilber Hidaka
 Discovery 4 coberta de gelo a -3º C
O clima da cidade é propício para o gelo cair do céu. Localizada a 1.353 metros de altura em relação ao mar e em uma linha onde passam ventos frios vindos da Cordilheira dos Andes, São Joaquim tem neve de cinco a sete dias ao ano. “Apenas um ou dois dias do ano a neve é bonita, deixa os campos e as ruas branquinhas”, conta o meteorologista Ronaldo Coutinho, que largou o calor de Florianópolis para morar em São Joaquim há 13 anos. A nevasca mais bonita dos últimos tempos foi em agosto do ano passado, quando nevou por dez horas seguidas. “Isso acontece, em média, a cada cinco anos”, diz.

A viagem para a rota do frio fica ainda mais interessante quando se chega à região via Florianópolis (distante 227 km de São Joaquim) pelas curvas fechadas da Serra do Rio do Rastro, alvo da neve todos os anos, entre as cidades de Lauro Muller e Bom Jardim da Serra. Dali até Urubici, placas com o aviso de “gelo na pista” fazem a gente se sentir na Europa. A escrita em português e os carros nacionais lembram que, por mais incrível que pareça, estamos no Brasil. “Quando neva e concentra gelo na pista, as estradas na serra ficam fechadas. O risco de acidente é muito grande”, afirma Varlei Mariot, dono de um bar na região há mais de 20 anos. Até mesmo a vegetação é semelhante à europeia, com tom amarelado, muito diferente da mata atlântica servida de muita chuva e sol em grande parte do Brasil. E nada da bendita neve...

Guilber Hidaka
Bonecos de neve estão por toda a cidade de São Joaquim e há até locais para esquiar na região
Quer ficar ainda mais maluco? Placas de clubes e parques da região anunciam a possibilidade de esquiar e até mesmo praticar snowboarding. Inacreditável! Procurar hospedagem, porém, não é tarefa fácil. Urubici e Urupema dispõem apenas de pousadas, e São Joaquim, a mais estruturada, tem apenas 1.200 leitos. Onde os turistas dormem quando acabam os quartos? No carro. “Vamos acabar com isso e nos tornar referência em turismo de frio”, conta o prefeito José Nérito. A inspiração é Campos do Jordão (SP), e a vantagem é a quantidade de dias com temperatura muito abaixo de zero e neve que aparece de vez em quando. No inverno, a cidade recebe 50 mil turistas, em sua maioria de Santa Catarina e do Paraná.

Como não frustrar quem vem em busca da tal da neve? A prefeitura aposta em uma máquina de neve artificial seminova, trazida do Canadá. No dia de sua estreia, infelizmente, só funcionou mais de cinco horas depois do previsto, quando não havia mais turistas na rua. Poucos flocos caíram do céu. Mais uma vez, fomos dormir frustrados em busca da neve.
Fogo sob o tanque

Carros atolados no gelo ou parados por conta do frio são comuns, principalmente quando as nevascas bloqueiam estradas. Presenciei um Gol 2011, alugado por um turista de Fortaleza (CE), que não ligava após uma madrugada de -4º C. “Não é possível que a locadora deixe o carro sem anticongelante. Peguei o carro em Gramado (RS), onde também é muito frio”, lamentava o empresário João Braga. Sobrou para o mecânico Ederson Figueiredo, acostumado a salvar os turistas desprevenidos de São Joaquim.

Guilber Hidaka
Mecânico conversa com turista nordestino, enquanto carro fica exposto ao sol para aquecer a água do motor (1). Prefeito de São Joaquim posa ao lado da máquina de neve: "De verdade ou artificial, quem vir aqui vai ver neve" (2). Meteorologista Ronaldo Coutinho trocou o calor de Floripa para viver abaixo de zero na Serra Catarinense (3). Luiz Cechinel já colocou até fogo embaixo de carro que ficou sob a nevasca durante a madrugada (4)
“É comum o óleo engrossar com o frio e a água do motor congelar. Você bate na chave e não há qualquer sinal”, conta Figueiredo. Para prevenir, os carros da região devem trocar o fluido antidescongelante do radiador a cada seis meses. “Se encontrar as mangueiras do carro enrijecidas, é sinal de que a água congelou. O melhor a fazer é deixar o capô aberto sob o sol”, explica. Caso tenha pressa, a saída é jogar água morna nas mangueiras e no motor. “Só não pode ser água fervente, pois o bloco pode rachar por conta do choque térmico”, completa.

E como resgatar um carro atolado na neve, que passou a madrugada abaixo de zero? Do jeito mais brasileiro possível. “Juntamos lenha e colocamos fogo embaixo do carro, próximo ao tanque. Só não pode ficar perto”, conta o mecânico Luiz Cechinel. Isso mesmo! Um incêndio dá conta de aquecer o combustível e todos os fluidos do carro novamente. Quando ele dá o primeiro sinal de que vai funcionar, o fogo tem de ser rapidamente controlado. “Carros a diesel são os que mais dão problemas, por conta do combustível criar uma espécie de parafina”, diz Cechinel. Há casos de trinca no bloco e até furos no coletor de admissão por conta do frio intenso. A alternativa encontrada para fazer um carro a diesel funcionar é adicionar um pouco de querosene no tanque e trocar o filtro de combustível. “Enchemos o tanque com 10% de querosene. É tiro e queda”, detalha o especialista. Correntes nas rodas ainda são úteis na região? “Foi-se o tempo que usavam esse recurso. Hoje ninguém tira mais o carro de casa quando neva muito forte, até porque as vias são bloqueadas pela polícia”, conta.

Guilber Hidaka
Anticongelante varia entre R$ 20 e R$ 50 e pode ser encontrado nos postos. Vela aquecedora é adaptada nos velhos carros a diesel e também nos caminhões. Esse tipo de motor é o que mais sofre com o frio rigoroso.
O termômetro do Land Rover marcava -3º C durante a madrugada mais fria do período que estivemos na região. O motor até ameaçou apagar na partida, mas foi firme (veja box). Quem sequer ameaçou dar as caras após três dias na região foi a bendita da neve. Eu, que nunca a vi pessoalmente, tive de me contentar com uma belíssima geada de mais de 10 cm, no belo registro do fotógrafo Guilber Hidaka na abertura dessa reportagem. Quinze anos depois daquele bate-papo com a dona Cida, minha mãe, descobri que ela tem mesmo razão. Neve no Brasil? Tem, mas é muito difícil. Vou pedir para o chefe me mandar para o Salão de Detroit, em janeiro...

Guilber Hidaka 
Entrando numa fria!
A neve nada mais é do que o estado sólido da água. A temperatura tem de girar em torno de 0º C (e não muito distante disso) para que ela seja criada em uma região propícia. “São diversos fatores, e o tempo úmido contribui. Quando começa a garoar, a chuva chegará até nós em forma de neve”, explica o meteorologista Ronaldo Coutinho. A chance de o turista ir para a Serra Catarinense e voltar decepcionado é grande, já que neva pouco por lá. Quer aumentar as chances? Vá para o Morro da Igreja, em Urubici, um dos pontos mais altos do Brasil, com 1.828 metros de altitude. Mas leve bastante agasalhos, pois os ventos fazem a sensação térmica superar os –20º C.

Sem medo do frio
Dois mil quilômetros de estrada, com direito a pequenas trilhas e até lagos a bordo de um Land Rover Discovery 4 HSE. O motor 3.0 V6 (245 cv e 61,2 kgfm) consumiu quase 240 litros de diesel. O farol de xenônio poderia ser mais eficiente à noite, mas não há o que reclamar do propulsor, que não teve medo nem mesmo do frio de -6º C durante a madrugada. Ele funcionou na primeira tentativa (até ameaçou oscilar) e não demorou a se firmar, enquanto o painel marcava 0º C por volta das 9 h da manhã. O comportamento é o de um verdadeiro “Bentley off-road”. O conforto dado aos ocupantes não lembra em nada um jipão e, para ele, uma “tartaruga” é o mesmo que uma pedrinha para qualquer carro popular: nada. A suspensão a ar se ajusta de acordo com a velocidade e passa segurança de um sedã. Ou seja, os ingleses ainda garantem diversão nas curvas.



Guilber Hidaka
Marcelino não gosta da neve. Lucia, natural de Urubici, fica encantado: "Acordo e vejo o campo, as árvores, as casas, tudo branquinho, é maravilhoso"
83 anos na neve
Uma casinha no alto do morro. Lá vive o homem que viu com os próprios olhos as maiores nevascas da história do Brasil. Fala mansa, mãos sujas de terra e poucos casacos, pois o frio não machuca mais o simpático Marcelino de Lima, 83 anos. Natural de São Joaquim, disse tudo o que o repórter não esperava ouvir: “O que eu mais gosto daqui é quando não neva”, falou com um sorriso que nasce devagar. O motivo de tanto desgosto? “Já perdi muito gado, os bichinhos ficam encarangados”, lamentou. Encarangado é o termo adotado pelos joaquinenses para definir congelado. Ao menos os sete gatos, que correm até suas pernas com um simples assovio, não sofrem com o frio. Como fugir do inverno? “Faço minha mistura de serragem e óleo de cozinha, é o que aquece a mim e minha velhinha”, conta antes de dar um beijo na simpática esposa, Lucia de Fátima. O único problema é a fumaça que toma conta da casa de madeira.
Fonte: revistaautoesporte
Disponível no(a)http://revistaautoesporte.globo.com/

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