Eu e o Juvenal Jorge somos velhos e bons
amigos (desde a faculdade, quase 20 anos, barrabás), mas raramente
concordamos em algo. Nossas discussões automobilísticas às vezes chegam a
cansar, mas mantém ambos com o cérebro funcionando e os adjetivos
afiados. Esta semana tive a idéia de colocar estas discussões no blog,
meio que para oficializá-las, e conseguir alguns juízes imparciais.
Começamos com a mais épica competição
automobilística que já existiu: Ferrari Daytona vs. Lamborghini Miura, a
clássica batalha italiana dos anos 60.
Cada um defendeu um dos carros. O leitor decide, votando nos comentários. Com a palavra, a defesa!
Trabalhando de graça
Óperas são como carros italianos. Vão do sublime ao ridículo num piscar de olhos.
Vejam esse caso aqui de Miura e Daytona. Ambos usaram nomes não italianos para seus modelos concorrentes. Um foi para a plaza de toros, e o outro went to the beach.
Italianos são assim mesmo. Têm umas idéias descabidas, e são
escandalosos e cheios de drama como uma ópera. Era melhor um se chamar
pizza e o outro mussarella. Mas vamos nos ater aos carros.
A Lamborghini nasceu do desejo de Ferruccio de fazer um grã-turismo dentro de sua fábrica de tratores. Nada a ver, todos sabemos, mas o cara tinha as facilidades para iniciar o projeto e fazer algo material. De onde veio o dinheiro, melhor não perguntar.
Reza a lenda que ele era dono de Ferrari e
achava o carro uma bela porcaria, cheio de defeitos, e deu uma
chegadinha em Maranello para reclamar com Enzo, o narigudo de óculos que
criou a marca de carros esporte mais desejada do mundo. E que também
vai do sublime ao ridículo facilmente hoje em dia.
Como e se essa estória é verdade, não temos
como confirmar. Mas a lenda é mais interessante que a realidade
normalmente, então divulguemos a lenda. Enzo recebeu Ferruccio, que
reclamou muito. Enzo disse para o baixinho: Está achando ruim? Faça um
melhor então!
Claro que o Sr. Lamborghini disse que iria
fazer, e foi à luta. Com 46 anos de idade, usou a experiência e
espertamente chamou um cara bom de chassis, Giampaolo Dallara, que
definiu como seria o primeiro “Lambo", o 350 GT, e daí para frente a
história é saborosa, com coisas sublimes como um Countach. E muito menos
sublimes e totalmente sem novidades como seu sucessor, o Diablo.
Ferrucio Lamborghini e o Miura
Mas a marca ficou famosa de verdade antes do
Countach, e o carro responsável por isso foi o Miura. Um dos carros
mais belos de todos os tempos, atrás apenas do Jaguar E-Type series I,
segundo uma grande pesquisa feita pela revista Autocar há alguns
anos. Listas são interessantes, e gostamos delas ao menos para dar boas
risadas. Se é ou não o segundo, terceiro ou primeiro mais bonito não
interessa mesmo, mas sim que é um tremendo carro e um marco da história.
Foi feito de 1966 a 1972, apenas e infelizmente.
Motor V-12 transversal montado atrás dos
ocupantes. Novidade total em tempos modernos, já que algum maluco deve
um dia ter feito algo parecido uns 50 anos antes, quem sabe?
Arquitetura inovadora de qualquer forma, que permitia um carro bastante
curto.
O desenho de Marcello Gandini vestia um
chassi que foi atração quando apresentado ainda sem carroceria no salão
de Turim de 1965 (acima), pelo seu motor atravessado e com câmbio e
diferencial integrados. Os três camaradas que trabalharam fora do
expediente foram basicamente Bob Wallace, Dallara e Paolo Stanzani. Um
neozelandês entre italianos. Pizza de kiwi. Foi definido com dimensões
contidas, lutando contra peso alto, visando também as corridas.
Bob Wallace, à direita
Ferruccio Lamborghini era mais atento a
grã-turismos, carros melhores para viagens que os esportivos puros como
os Ferrari da época, e inicialmente não gostou da idéia radical dos três
entusiastas. Mas era inteligente, e desde que não houvesse impacto ao
trabalho normal dos três, deixou-os exercitar a mente com a nova
criação, desde que fosse depois do expediente. Nada como trabalhar para o
dono da empresa, e não para representantes de acionistas.
Claro que depois de certo tempo, e vendo que
recebera encomendas mesmo sem terem ainda uma carroceria, Ferruccio
assumiu de vez que era mesmo um carro a ser produzido, e autorizou a
fabricação e evoluções do modelo inicial. Foi mostrado para valer em
1966 (ah, esses carros com a minha idade!) ainda sem estar resolvido o
problema de empacotamento de motor dentro da carroceria belíssima. Não
foi fácil segurar os jornalistas e curiosos no Salão de Genebra, que
queriam abrir a tampa do motor para ver o que tinha dentro. Não tinha
nada ainda.
Resolvido o projeto, o carro foi aclamado
pela imprensa, e ficou mundialmente famoso por aparecer na abertura do
filme "The Italian Job" (Um Golpe à Italiana), aquele dos Minis
voadores, filmado em 1969. Interessante é que um carro da mesma cor que
esse do filme foi o escolhido por Frank Sinatra (abaixo).
A Ferrari contra-atacou com um prato de
arroz com feijão com nome de cidade do estado americano da Florida e de
pista de corrida. Esse modelo, o Daytona, foi projetado com aquela
formulazinha básica de motor na frente, longitudinal, câmbio junto com
diferencial lá atrás, aquela moleza de quem não quer trabalhar muito
além do horário. Psicologicamente apoiados no emblema de um cavalo
empinado, se ativeram à fama para concorrer com uma novidade espetacular
que era o Miura.
Qual é melhor, pior, mais rápido, mais
lento, faz mais curva e outras coisas assim, digamos, mundanas, não é
escopo aqui. O grande lance é que o Miura é algo fruto de trabalho fora
de expediente de alguns caras não muito normais, que fizeram aquele que é
considerado o primeiro supercarro, um carro de corrida que pode ser
usado na rua.
Depois dele, só poderia mesmo vir algo de um planeta distante, o Countach.
JJ
Um grande Carro
Por Marco Antônio Oliveira
O conceito de revolução é sempre mais belo e romântico do que a
evolução. Acreditar numa idéia e levá-la a cabo, mesmo abaixo de enormes
dificuldades, é realmente uma das coisas mais nobres que uma pessoa
pode fazer. Mas a revolução, sendo ela, como já definiu Napoleão, “uma
idéia que encontrou suas baionetas”, não acontece sem destruição do
passado, sem a quebra e negação de tudo que veio antes, sem dor e
sofrimento. E, paradoxalmente, não há nobreza em causar dor e
sofrimento.
A história do Miura, já contada aqui pelo JJ, é de longe a mais bela. Os
jovens Dallara, Stanzani e Wallace trabalhando de noite por conta
própria para fazer algo em que acreditavam, o entusiasmo deles
infectando Ferrucio. A carroceria magnífica cuja criação é reivindicada
por vários gênios da pena. A revolução que causou no mundo do
supercarro. É uma história de sonho e realização, de superação e amor ao
que se faz na vida. Épica, cinematográfica, magnífica.
Depois, há a aparência do carro. As curvas de cintura, os cílios nos
faróis, as entradas de ar na porta... Uma beleza pura, imortal,
atemporal. Se fosse lançado hoje e não em 1966, ainda assim seria
belíssimo e moderno. Uma obra-prima, uma das pouquíssimas vezes em que
um carro realmente pode ser comparado a uma obra de arte de verdade.
Mas ainda assim, cá estou eu a defender o seu maior concorrente, o
Ferrari 365/4 GTB, que ficou conhecido como Daytona, um carro que é mera
evolução de seu antecessor, uma coisa que comparativamente, parece sem
imaginação e sem significado. Por que faria isso?
Tudo porque, apesar de ser uma máquina passional, o automóvel ainda é,
antes e primeiro que tudo, uma máquina. Idéias e sonhos movem o mundo e
as pessoas, mas para que as idéias e sonhos funcionem no mundo real é
preciso que funcionem melhor do que as coisas que substituem. E
raramente as revoluções são assim; o cerne de uma revolução é abandonar
tudo, romper, quebrar, e começar tudo de novo de outra forma. Abandono
total do passado seguido da redenção completa pelo novo.
No campo da engenharia, onde se insere qualquer automóvel, não há nada
pior a fazer do que isso. Muito já se falou sobre trabalhar sem
compromisso, projetar a partir de uma folha em branco. Mas a experiência
me ensinou que, absolutamente sempre que se amassa o papel e começa-se
de novo do zero para resolver qualquer problema, o problema em questão é
de fato resolvido. Mas em seguida, aparecem 325 outros completamente
desconhecidos e de dificílima solução, e quando os descobrimos, é tarde
demais para voltar ao passado e retomar a folha amassada no lixo. O
carro está pronto e a Inês é morta. O trabalho de conter de alguma forma
o problema inicial é substituído pelo trabalho de conter tantos outros,
menos conhecidos. Evolução é o segredo para automóveis realmente bons, o
real motivo de ser dificílimo fazer um carro esporte melhor
objetivamente que, por exemplo, um Corvette ou um Porsche 911, dois
carros evoluídos pacientemente por décadas, independente de suas muitas
limitações iniciais.
O Miura, com toda sua beleza e graça, com toda a fúria de seu cacofônico
V-12 transversal montado tão perto de suas costas que parece
aparafusado a seu crânio quando ligado, ainda assim é um carro muito
inferior ao clássico Ferrari Daytona. Os pedais estão no meio do carro,
empurrados para lá pela caixa de roda que entrou no habitáculo. O
espaço é pequeno, a alavanca de câmbio pesada e recalcitrante. O
comportamento é tudo menos previsível; é um carro que se dirige com
cuidado, mais que isso (verdade seja dita), medo, pavor de morrer em uma
bola de fogo tão grande que poderia ser vista de fora da atmosfera
terrestre. Ajuda este pavor o fato de que aquela carroceria
magnificamente bela é também magnificamente mal-ajustada à sua função.
Na última evolução do Miura, o SVJ
(acima), Bob Wallace tentou de tudo para manter a frente no chão, como
pode-se ver na foto, estragando o estilo do carro no processo.
Isto porque o básico que se espera de um carro com mais de 350 cv é que,
a altas velocidades, ele se mantenha no chão. A dianteira do Miura tem
tanto lift (força
aerodinâmica para cima) que poderia se pensar em exigir um brevê de
piloto e colocar umas asinhas retráteis atrás para estabilizar o vôo.
Acidentes horrendos aconteceram na época (inclusive, diz a lenda, um
aqui na via Anchieta), do tipo que nos dias de hoje levariam a pequena
empresa de Sta Agata Bolognese a falência 5 minutos depois do primeiro
Miura sair as ruas. Voando, claro.
Não, o Miura funciona melhor como uma idéia, um sonho. Na realidade, é
bom apenas, como infelizmente qualquer Lamborghini (até os modernos, que
ao contrário do Miura são grandes carros para dirigir rápido), andando
devagar mas com muito barulho, vestido numa cor berrante, pelas ruas de
Beverly Hills ou Mônaco. Apenas um símbolo de sucesso e de
exibicionismo. E mesmo assim, andando devagar, o medo não some ao
dirigir: a visibilidade para fora é terrível, e sempre se fica cabreiro
com a possibilidade de encostar-se a algo...
Já o Daytona não podia ser mais diferente. Habitáculo espaçoso (mas não
enorme), um painel completíssimo e visível, ar-condicionado que funciona
bem, visibilidade boa. O carro, que tem um longo (e bem visível) capô,
faz você se sentar perto do eixo traseiro, de forma que o controle do
carro fique natural e previsível. E natural e previsível é o que permeia
a sensação aqui; o comportamento é totalmente benigno, fazendo com que
as reações instintivas sejam as desejáveis em situações limite.
Isto porque o carro tem layout perfeito para as ruas: 50% do peso em
cada eixo, motor central-dianteiro e transeixo atrás, suspensão
independente por duplo braço e freios a disco nos quatro cantos. Motor
central-traseiro como o do Miura é desejável em pista, mas nas ruas,
ontem e hoje, é o compromisso menos aceitável. A Ferrari teve que se
curvar a ele por pressão da mídia, mas desde o 550 Maranello, seus mais
caros carros esporte voltaram a esta configuração perfeita para as ruas.
Os grandes Ferrari de quatro lugares nunca deixaram de ser assim.
Mas não é mais rápido, o motor central-traseiro? Em pista sim, mas em
rua, onde não sabemos o que vai acontecer, que chão vamos encontrar,
quem ou o quê estará depois de cada curva, a única forma de se andar
realmente rápido é confiar no carro. E isto só acontece em carros de
comportamento realmente benigno.
E rápido o Daytona é. Mais rápido que o Miura, na verdade mais rápido
que qualquer coisa na sua época. O V-12 é grande (4,4 litros), torcudo,
mas grita de forma mais exuberante e apaixonada que Elis Regina com meio
quilo de cocaína na cabeça. Seis enormes Webers duplos, "V" de 60
graus, duplo comando no cabeçote, todo em alumínio. Tudo que você sempre
pediu para Papai Noel. São 352 cv de puro nirvana automobilístico, uma
fonte sem-fim de prazer e velocidade.
Yates e Gurney (ao fundo), com o Daytona que fez costa a costa dos EUA em 36h.
Velocidade esta, aqui tem que ser dito, que dá para usar. Acessível. O
carro é perfeitamente estável a quase 300 km/h, e era a arma preferida
de quem queria viajar por longas distâncias realmente rápido. Como já
contei aqui no blog, em 1971, pilotado por Dan Gurney e Brock Yates (da
revista Car and Driver americana), bateu o recorde de travessia
dos EUA em automóvel, durante a famosa corrida clandestina “Cannonball
Run” daquele ano. Ao completar o trajeto em menos de 36 horas de Nova
York a Los Angeles, Gurney disse, brincando de se defender: "Em nenhum
momento ultrapassamos 175 mph!" (281 km/h).
É o tipo de carro que é um companheirão, feliz em te acompanhar em
qualquer lugar, em qualquer tipo de humor. Te mantém confortável e
tranqüilo de 40 a 280 km/h. Quem não adora isso?
A gente pode escrever quanto quiser aqui, mas uma máquina é antes de
tudo uma máquina, tem uma finalidade específica. E a única maneira de
comparar dois carros é tomando esta finalidade como o principal. E
assim, não há como não preferir o Ferrari.
O Lamborghini pode ser a melhor história, o melhor livro, a melhor
reportagem, o melhor post. Mais bonito com certeza é, não há como negar.
Mas o Ferrari definitivamente é o melhor carro.
MAO
MAO
Fonte: autoentusiastas
Disponível no(a): http://autoentusiastas.blogspot.com
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Um comentário:
Os dois são oa mais belos cupês desta década, no entanto pela história em ficaria com o lamborghini..... Agora se pudesse ter os dois teria cupê MIURA e o conversível DAYTONA......... Thyago Osasco SP
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